16 de março de 2015 | 02h04
O governo tentará reconstruir pontes, oferecer supostos salva-vidas aos náufragos da Lava Jato. O Supremo Tribunal Federal, felizmente, é outro departamento. Não está submetido às conveniências políticas do Executivo. Além disso, acordos funcionam quando o governante tem um mínimo de credibilidade e sustentação. Dilma desceu ao fundo do poço. E Lula, o criador, escorrega com ela. O ex-presidente, astuto e rápido no jogo, tenta negar a paternidade. Agora é tarde. Dilma não cairá sozinha. E Lula sabe disso. Assombra-o, sobretudo, o avanço das delações premiadas. Só isso explica seu irresponsável apelo ao "exército do Stédile". Lula está tenso por uma razão muito simples: a mentira escancarou-se, a punição aproxima-se, a estrela apagou-se.
Vivemos um momento difícil e perigoso. Os assaltantes do dinheiro público e os estrategistas do projeto de perpetuação no poder, fortemente atingidos pela solidez das nossas instituições democráticas, não soltarão o osso com facilidade. O clima não está legal. O País está radicalizado graças à luta de classes tupiniquim do "nós e eles". Há riscos no horizonte. Mas precisamos acreditar no Brasil e na capacidade de recuperação da nossa democracia. A sociedade amadureceu. O exercício da cidadania rompeu as amarras dos marqueteiros da mentira. E a imprensa, o velho e bom jornalismo, mostrou sua relevância para a sobrevivência da democracia e das liberdades.
A relação de Lula e do PT com a democracia é um pouco estranha. Nada como o recurso a um banco de dados para revisitar pensamentos reveladores. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2009, o ex-presidente afirmou que o papel da imprensa não é o de fiscalizar, e sim informar. "Não acho que o papel da imprensa é fiscalizar. É informar. Para ser fiscal tem o Tribunal de Contas da União, a Corregedoria-Geral da República, tem um monte de coisas. A imprensa tem de ser o grande órgão informador da opinião pública." Lula questionava um dos pilares da democracia: o papel fiscalizador da imprensa. Tinha seus motivos, sem dúvida. Suas declarações encerravam uma contradição com seu suposto e alardeado respeito à liberdade de imprensa. Fiscalizar faz parte integrante do processo informativo. E como Lula não é tonto, o falso disjuntivo (informação versus fiscalização) tinha uma finalidade precisa: limitar o papel fiscalizador dos jornais e desacreditá-lo. Não conseguiu. Felizmente.
Os bons ventos da economia mundial nos mandatos de Lula, seu bom senso, seu carisma e seu talento de encantador de serpentes garantiram-lhe um céu de brigadeiro. Mas seu desejo de perpetuação no poder, direto ou por delegação temporária, não combinava com escrúpulos éticos. Os bons indicadores da economia, então, não impediram o Brasil de trombar com as consequências funestas de um populismo que encolheu a oposição, estimulou o cinismo, encurralou algumas togas e tentou aprisionar as redações.
Afinal, qual é perversidade que deve ser creditada na conta dessa imprensa tão questionada por Lula? A denúncia de recorrentes atos de corrupção que nasceram como cogumelos à sombra da cumplicidade presidencial? Ou será que a irritação de Lula é provocada pelo desnudamento de seu papel na crise que assola o Brasil? A sustentação do governo de coalizão, aético e sem limites, deu no que deu.
"Se Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão." Eis uma pérola do pragmatismo lulista. O ex-presidente não fez nada para mudar esse quadro. Ao contrário, aprofundou-o. Seu estilo de governança, transmitido com primorosa pedagogia para sua sucessora, fortaleceu o que de pior existe na vida pública brasileira.
Para o brilhante antropólogo Roberto DaMatta, há um lado mais dramático em tudo isso. "Lula tem a virtude de falar claro", dizia ele. "Às vezes penso que ele não tem inconsciente. De perto, a declaração pode parecer horrível. De longe, é a constatação da nossa face dupla, das nossas cumplicidades com o partido que não ia roubar nem deixar ninguém fazê-lo, mas fez o mensalão; ressuscitou Sarney e quejandos, desmoralizou o Congresso; enfim, o nosso lado que odeia a lei valendo para todos - esse Judas dentro de cada um de nós que não quer mudar o 'você sabe com quem está falando?'", concluiu DaMatta.
O diagnóstico é duro, mas verdadeiro. Existe um elo indissolúvel entre o político que rouba, o cidadão que ultrapassa o farol vermelho, o governante que confronta as normas e o assaltante que mata: todos deixaram de levar em conta a ética e a lei. E só há um modo de reverter essa distorção da nossa cultura: educação, exercício da cidadania, ética, liberdade de imprensa e fiscalização do poder.
O Brasil depende - e muito - da qualidade da sua imprensa e da coerência ética de todos nós. Podemos virar o jogo. Acreditemos no Brasil e na democracia.
*Carlos Alberto di Franco é jornalista. E-mail: difranco@iics.org.br
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