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Afronta ao Estado laico

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Por Redação
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Uma nova faceta da Câmara Municipal, revelada em reportagem do Estado, confirma que os vereadores – ressalvadas as exceções que confirmam a regra – não se cansam mesmo de surpreender desagradavelmente os paulistanos. Como se não bastasse trabalhar pouco e ganhar muito bem – somando salário e diversos benefícios –, gastando mais tempo em cuidar de assuntos irrelevantes ou de seu interesse eleitoral imediato do que dos importantes problemas da cidade, parte considerável dos vereadores resolveu também entrar no perigoso terreno da confusão de política e religião.

A Câmara está se transformando em palco de celebrações religiosas que nada têm a ver com suas funções de legislar, fiscalizar os atos do Executivo e discutir assuntos de interesse público. Entre janeiro e junho deste ano, foram realizados ali 24 atos de cunho religioso, quase um por semana, segundo levantamento feito pela reportagem, com base na agenda de eventos do Cerimonial da Câmara. Expressões como “Aleluia, irmãos” e “Glória a Deus”, finalizando com “Amém”, quase gritadas, já estão se incorporando ao ambiente da Câmara como se ela fosse um templo.

Um exemplo desse ativismo religioso fora de lugar é o do Grupo de Oração Ministério Ágape Reconciliação, ligado à Igreja Bola de Neve. Desde 2014, o grupo realiza reuniões mensais nas dependências do Legislativo municipal, que chegam a durar três horas e para as quais consegue a adesão de cerca de 200 participantes. Esses encontros são possíveis graças à interferência do vereador Eduardo Tuma (PSDB), que não por acaso também foi autor do estranho projeto de lei aprovado por seus colegas, mas em boa hora vetado pelo prefeito Fernando Haddad, que instituía o “Dia do Combate à Cristofobia”.

Numa demonstração de que sabem muito bem serem irregulares essas reuniões naquele local, muitos de seus organizadores tentam disfarçar seu caráter religioso, apresentando-as como homenagens a personalidades ligadas à chamada cultura gospel. Foi o caso do “Louvorzão Fé São Paulo”, realizado no último dia 10 de junho, no salão do Plenário, com o apoio do vereador Jean Madeira (PRB), pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso não o impediu de afirmar na ocasião, em tom de desafio: “Se diziam que não tinha como acontecer isso na Câmara, pronto, já está acontecendo. Uma salva de palmas para Jesus”.

Outro aspecto da maior gravidade dessas celebrações é que nelas não há apenas proclamação de determinadas crenças religiosas. Há, também, manifestações de intolerância com relação a outras religiões e de preconceitos contra grupos como os homossexuais. O que, no clima de exaltação ali predominante, pode alimentar fanatismos e até estimular atos violentos contra os que pensam ou se comportam de maneira diferente.

É preciso dar um basta a essa ilegal e perigosa utilização de instalações e de recursos públicos – os custos daquelas reuniões são bancados pelos cofres municipais – para fazer proselitismo religioso e incentivar a intolerância. Isso afronta a laicidade do Estado brasileiro. Ela foi estabelecida por todas as Constituições desde a Proclamação da República, como lembra o presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São Paulo, Roberto Dias. De acordo com esse princípio, o Estado tem de assegurar liberdade religiosa e não pode favorecer nenhuma religião.

Ou como diz a vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, Maria Garcia, “se há conotação de culto religioso nesses eventos, com rodas de oração, canções de louvor, testemunho de fiéis, o espaço público não deveria ser usado”.

Está totalmente equivocada, portanto, a presidência da Câmara, quando afirma que os vereadores têm direito de requisitar os auditórios da Casa para eventos particulares. Tal direito não existe nesse caso. Impedir que aqueles eventos se realizem na Câmara é uma obrigação legal.