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Opinião|Aids - particularidades no tratamento

Atualização:

O progresso do tratamento teve um salto qualitativo com a descoberta dos inibidores da protease do vírus. Pela primeira vez foi possível a carga viral dos pacientes cair a níveis ditos indetectáveis - que desgraçadamente não eram exatamente indetectáveis. Hoje sabemos que, mesmo com cargas virais inferiores ao mínimo revelado pelos exames mais apurados, vão a 50 genomas/ml, em testes menos práticos. Mas agora mais sensíveis, é possível indicar a presença do vírus ainda em quantidades muito menores em pacientes devidamente tratados. O dr. David Ho, numa conferência internacional sobre aids em Vancouver, chegou a fazer modelos matemáticos imaginando que o tratamento continuado levaria à exaustão dos reservatórios do vírus no organismo e, portanto, a algo como a cura. Mas isso não é verdade. Os novos remédios contra o HIV, contudo, mudaram a doença, mesmo sem curar. Quem os toma regularmente conta com expectativa de vida longa, ainda que não igual à dos não infectados, pois apareceram efeitos colaterais a longo prazo. Já conhecíamos alguns a curto prazo, dos inibidores da transcriptase reversa, que outrossim afetam a função mitocondrial e podem levar a graves episódios de acidose lática. Os a longo prazo, como a lipodistrofia e as dislipidemias, são problemas não resolvidos. Como um paciente nos disse: no começo da epidemia da aids eles morriam jovens, bonitos e agora sobrevivem com rosto magro, barriga proeminente, braços e pernas finas; as mulheres, com seios caídos - ele preferia os tempos pretéritos. Uma primeira "vacina" contra a infecção pelo HIV veio dos estudos colaborativos para prevenir a transmissão vertical da doença, de mãe a filho. Ficou claro que o tratamento combinado da mãe antes e durante o parto e da criança pós-parto diminui a transmissão de 25% dos casos para 2%. Avaliações posteriores com medidas mais agressivas tornam a veiculação vertical até mais rara. A procura de uma vacina verdadeira, por outro lado, revela resultados decepcionantes. Não existem vacinas aceitáveis contra retrovírus, mas a humanidade é teimosa. Cada vez conhecemos mais sobre a biologia do HIV e tentativas continuam. A disseminação do HIV diminui com campanhas educacionais e uso de preservativos, masculino e feminino. Propaganda da castidade, como era esperado, fracassou estrondosamente. Mais recentemente a profilaxia pré-exposição, com uso de medicamentos, provou ser eficaz. Provavelmente vai merecer aceitação em grande escala, apesar dos problemas logísticos e do preço. Mas consideramos que prevenir doença crônica para o resto da vida sai mais barato que o tratamento e o surgimento de muitas complicações depois. E quanto à cura? A única pessoa curada, aparentemente, é um norte-americano que precisou de transplante de medula por leucemia mieloide aguda, cujo doador era homozigoto para um defeito no receptor do vírus HIV em suas células. A seguir o paciente estava com sua carga viral indetectada, foi transplantado e os remédios anti-HIV, suspensos. Até hoje o vírus não voltou. Um segundo caso: criança filha de mãe contaminada que não usou medicamentos anti-HIV na gravidez recebeu com intensidade antirretrovirais. Por decisão pessoal o tratamento foi suspenso e a criança meses depois voltou à consulta médica, quando parecia estar curada, sem carga viral detectável. No seu último exame, todavia, ela tinha uma carga viral de 16 mil cópias/ml. Não houve cura, porém pode ter sido uma possibilidade de interferir na história natural da doença e fazer o paciente controlá-la a longo prazo, o que os americanos denominam elite controller. Está ficando claro que o paciente com HIV deve ser tratado precocemente, de preferência quando da infecção aguda, que já sabemos reconhecer. O tratamento precoce empurra a doença para uma idade tão avançada que o paciente morre de outras coisas. Sabe-se também que tempos longos de tratamento levam a complicações da medicação. Certamente a inflamação crônica dos acometidos pelo HIV pode causar implicações que encurtam a vida, mas a situação dos contaminados hoje é muito melhor que antes. Novos remédios vão sendo descobertos e testados. A aids virou doença crônica. O paciente raramente precisa de hospital e o atendimento é feito por consultas regulares, com ênfase na tomada adequada das medicações. O maior problema é aderir ao tratamento. Mas até nisso progredimos, pois pílulas combinadas permitem que o número das utilizáveis pelo paciente por dia seja mais civilizado que as 20 ou mais que um de nossos acometidos se deu ao trabalho de contar. A infectologia conjuntamente mudou. Apareceu uma subespecialidade, a aidsologia, e há colegas dedicados exclusivamente a ela. A aids propiciou enormes avanços em nossos conhecimentos sobre resposta imune, que demorariam muito mais a ser realizados se não tivessem essa motivação e, vale salientar, não conseguissem os muitos grants, financiamentos prestimosos para estudar e controlar a doença. Adoraríamos ver o ciclo completo da doença, sua descoberta, a extensão inicial, o diagnóstico e outros recursos para monitorá-la, além de controle de técnicas de profilaxia, uma vacina, terminando pela erradicação. Acreditamos que método científico vai nos levar a algo assim. Talvez estejamos superestimando nossas capacidades. Afinal, só a varíola foi extinta até hoje. Mas somos otimistas. O mundo não acabou com a aids. Nossa espécie é muito resistente e, parafraseando Churchill, faz o que tem que ser feito, após testar todas as outras maneiras. Algum dia teremos o mundo ou sem a aids ou com ela controlada, de preferência com uma vacina. E para terminar, aids é o nome da doença nos EUA; nos países de língua latina é sida. Apesar da nossa respeitável idade, vem-nos à mente uma famosa reunião em Brasília em que foi proposto por algum êmulo do nosso glorioso ministro do Esporte, Aldo Rebelo, que mudássemos este anglicismo, aids, para sida. Levantou-se uma menina dos fundos da sala e reclamou energicamente: "Eu e todas as Marias Aparecidas (nome bastante comum no Brasil) protestamos e não aceitamos esse desaforo. Foi consenso. Aids era, aids ficou, aids será. *Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak são médicos infectologistas 

Opinião por Vicente Amato Neto
Jacyr Pasternak