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Apagão jurídico

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Por Manuel Alceu Affonso Ferreira
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Geralmente são os atos administrativos, a indefinição jurisdicional e o desrespeito aos contratos que debilitam as relações jurídicas. Agora, todavia, essa instabilidade teve inesperada origem. Refiro-me ao acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, majoritariamente, aboliu do cenário jurídico brasileiro a Lei de Imprensa. Parece-me que, nessa supressão, o Supremo errou, malgrado o imenso talento do ministro Ayres Britto, relator do julgado. E errou não por haver enxergado antagonismos entre a lei ordinária e o direito posto na superveniente Constituição de 1988, porquanto eles realmente existiam no tocante a algumas (não a todas) das prescrições do estatuto de 1967. Equivocou-se, isso sim, não só porque muitos dos comandos da Lei 5.250 não ofendiam os ditames maiores - razão pela qual não seria justificável a ab-rogação decretada -, mas enganou-se também por sonegar ao Direito positivo nacional, sem que nada consiga substituí-lo, um regramento que há 42 anos vigia e que a própria Alta Corte, em anteriores decisões, profilaticamente vinha consertando. Diante das especificidades da atividade jornalística, os códigos do Direito comum não são capazes de, isoladamente, solucionar as situações de conflito entre os direitos da informação e os da honra, da privacidade e da imagem. Tampouco a Constituição, apesar da profusão de princípios e normas aplicáveis à imprensa, será por si apta a resolver os impasses a que os periódicos e a radiodifusão são diuturnamente submetidos. Sendo mais claro, o que, na Constituição, eficazmente substituirá a fórmula - direta, concreta e altamente democrática - contemplada na lei de 1967 (artigo 27) para descaracterizar a alegação de abuso no exercício da liberdade de informação? O que, no Código Penal, ao contrário do admitido na Lei 5.250 (artigo 21, parágrafo 1°, b), autorizará a exceção da verdade quando na sua produção consentir o ofendido? O que, no mesmo código, já que a tanto lá não aludiu, permitirá a divulgação das explicações prestadas pelo interpelado (Lei 5.250, artigo 25, parágrafo 2°)? Ademais, mesmo desprezada a ausência de regulação do direito de resposta - o que traduz o mais óbvio dos prejuízos causados pela inexistência de lei especial -, como fixar civil e penalmente, com único apoio na legislação comum, a responsabilidade por escritos e transmissões, questão à qual a lei expelida emprestara minucioso tratamento (artigos 28, 37 e 38)? Que dizer, então, dos critérios antes alinhados para o arbitramento monetário do dano moral (artigo 53), critérios esses que a experiência forense comprovou utilíssimos no sentido de estancar as indenizações excessivas? Veja-se o caso do sigilo de fonte. Imprescindível ao jornalismo de investigação, ele é tutelado pela Constituição em curta e solitária passagem. Desse segredo a Lei de Imprensa havia duplamente cuidado (artigos 7º e 71), inclusive para garantir que o silêncio do repórter sobre a origem de seus relatos não lhe renderia "qualquer sanção, direta ou indireta, nem qualquer espécie de penalidade". Onde estão, nos códigos ordinários, as regras que atendam a essas constantes situações enfrentadas pelos jornalistas e pelos veículos? Como pretender que, à falta de ordenamento particular, a autoridade judiciária resolva tais necessidades simplesmente apelando para o plano geral da Constituição? Nem vinga, de sorte a legitimar a vacuidade advinda da genérica supressão da lei especial, o atraente, mas imprestável, argumento de ser ela "herança da ditadura". Primeiro, porque, embora de modo geral as leis reflitam o ideário sociopolítico da época em que foram votadas, essa regra, como qualquer outra, admitirá exceções. Segundo, porque as virtudes ou os defeitos de uma lei devem ser detectados no seu conteúdo, jamais na certidão de nascimento. Terceiro, porque, como salientou Vladimir Passos de Freitas a respeito de outras leis também votadas no mesmo período discricionário, jamais se imputou, para desfazê-las, o apodo de "entulho autoritário". Querem exemplos? A definidora do crime de sonegação fiscal (1965), a instituidora do Código Eleitoral (1965), a regradora do direito de representação e o processo por abuso de autoridade (1965), a que dispôs sobre a ação pública nos crimes de responsabilidade (1967) e até o "Estatuto do Índio" (1973). Antes de mim, e com a natural superioridade, José Paulo Cavalcanti, Walter Ceneviva, René Dotti e outros especialistas mostraram os malefícios que esse vácuo jurídico trará. Por variados motivos, o Congresso Nacional não costuma ser célere na sua missão legislativa, fazendo, portanto, presumir a tardança na votação de uma nova lei de imprensa. Até que ela seja promulgada, a atividade jornalística experimentará dias de incertezas e insegurança, passando a contar com um só estribo: o da jurisprudência, que, combinando preceitos da Constituição, artigos do Código Civil e dispositivos penais, logre fincar roteiros para uma satisfatória resposta aos conflitos entre a informação e os direitos da personalidade. Ocorre, contudo, que também a consolidação da jurisdição é tarefa demorada, dado que, como sabido, a cada cabeça judicante pode corresponder uma sentença... Em suma, cessado o foguetório inicial, o tempo mostrará não ter sido benéfica a supressão, tout court, da Lei de Imprensa. Nem para os veículos, nem para a massa dos leitores, ouvintes e espectadores. Vivemos o vazio que, carente de cânones explícitos, pretextará intermináveis debates judiciários. Afinal, muito pior do que uma lei defeituosa, mas corrigível, é o blecaute normativo no qual mergulhamos. Manuel Alceu Affonso Ferreira é advogado