
17 de dezembro de 2014 | 02h04
Em qualquer instituição de qualquer natureza, civil e militar, pública ou privada, dirigida por cúpula chefiada por presidente, diretor ou comandante, supõe-se que essa autoridade, com seus auxiliares imediatos, exerça o controle do que nela acontece. A ocorrência de um ou de outro delito pessoal e episódico, detectado, corrigido e punido, em princípio de fato não atinge diretamente a cúpula (culpa coletiva) ou qualquer de seus membros.
Todavia, quando a instituição é contaminada por um clima de delitos graves, sua direção superior tem, sim, o que poderíamos chamar de responsabilidade funcional, não importa que não se possa atribuir ao chefe maior ou a qualquer de seus auxiliares do alto escalão participação direta neste ou naquele delito específico.
Generalização de desmandos dificilmente pode ocorrer quando a direção superior está apta e decidida a contê-la, quando há na condução da instituição competência, diligência e organização adequada. O frequentemente alegado desconhecimento dos fatos, se real, pode isentar da culpa sujeita à incriminação judicial, mas não da responsabilidade funcional inerente à autoridade.
Essa é a situação atual da Petrobrás. Ainda que não existam evidências de ligações diretas entre os delitos em realce na mídia e sua presidente e qualquer diretor atual, o clima de desmandos que se estendeu à empresa, no Brasil e fora dele, dificilmente poderia existir se sua direção superior e, para assuntos de sua responsabilidade consultiva ou acessória, seu Conselho Administrativo estivessem - é preciso reconhecer, isso não é fácil, mas é imperativo - capacitados, atentos e ativos para impedir a deterioração dos padrões de lisura que devem prevalecer, muito mais numa empresa do porte da Petrobrás, de influência ponderável na vida nacional.
Esta abordagem do tema não pretende - nem poderia pretender, por inexistirem dados concretos a respeito - culpabilizar nenhuma alta autoridade atual da empresa por algum despautério específico. Trata-se de reconhecer a responsabilidade funcional da cúpula da empresa, por terem os delitos chegado à abrangência e à grandeza a que chegaram.
Quando a "Comissão Nacional da Verdade", encerrada na semana passada, entende que presidentes da República e ministros de Estado são responsáveis por fatos que teriam ocorrido nos meandros da imensa máquina pública, há sentido em isentar a diretoria da Petrobrás de responsabilidade funcional pelo objeto da Operação Lava Jato? Ainda que sem a atribuição de culpa pessoal concreta, a responsabilidade funcional pelo clima negativo é vinculada à autoridade.
Numa empresa privada, seu(s) proprietário(s) controlador(es) muito provavelmente praticaria(m) a sugestão do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Em princípio (evidentemente, podem existir exceções), o mesmo dever-se-ia aplicar a uma empresa pública, pelo menos como satisfação perante o povo proprietário.
O problema, no entanto, é mais complicado na esfera pública - complicação que provavelmente pesou na manifestação do ministro da Justiça sobre a não culpabilidade da diretoria da Petrobrás e, portanto, sobre a impropriedade de sua substituição: o compromisso político na sua configuração.
No nosso Estado, marcado historicamente pelo patrimonialismo, o compromisso entre o governo controlador (representante do povo proprietário) e as pretensões dos partidos políticos que o apoiam cria um embaraço óbvio. Como justificar a dispensa de um diretor indicado por um partido de apoio ao governo sem que lhe seja atribuída alguma culpa pessoal concreta? O que esse diretor fez para ser substituído? São perguntas que, na verdade, devem ser respondidas pelo inverso: a justificativa da dispensa é o que ele não fez - a contenção e o controle dos delitos. Pode não ter havido a prática de crime, mas houve a não prática da contenção do crime, responsabilidade inseparável da autoridade - o que, diga-se de passagem, não está acontecendo só na Petrobrás...
Esse é um problema patológico do nosso regime de presidencialismo de coalizão (de cooptação). Na medida em que o "aparelhamento político" é critério protagônico no preenchimento de cargos, fica compreensivelmente difícil para o governo substituir os titulares indicados pelos partidos sem uma razão pessoal expressiva e indiscutível; a responsabilidade funcional, coletiva ou individual, pode ser vista com simpatia pelo povo, mas não é vista assim pelos interesses partidários que a veem como responsabilidade abstrata sujeita a controvérsia e o governo corre o risco de se complicar em temas que exijam o apoio dos partidos atingidos.
A Petrobrás é hoje o foco dessa questão, na mídia e no interesse do povo, contudo a questão estende-se a toda a nossa estrutura pública. Têm sido comuns as situações em que a incompetência, a lentidão ou ausência de controle e a improbidade prejudicam nossas empresas públicas e, em consequência, o povo delas dependente, sem que isso tenha implicado a substituição dos detentores de cargos, delegados dos partidos no nosso capitalismo de Estado patrimonialista. Haja vista os problemas de energia elétrica: alguma empresa do setor elétrico teve sua diretoria substituída por causa deles?
O encaminhamento que vier a ser dado à Petrobrás sinalizará a tendência a respeito.
*Mario Cesar Flores é almirante
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