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As esfumaçadas greves federais

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Por Gaudêncio Torquato

Quantas voltas o mundo dá... O Brasil que o diga! Há 32 anos o ABC paulista, sob os braços cruzados de 100 mil metalúrgicos, acendia a mais alta fogueira do movimento grevista nacional. Em 1.º de abril de 1980, Lula emergia como o maior líder operário ao comandar movimento paredista que resistiu por mais de um mês e abriria um dos mais gloriosos capítulos no livro das greves. Eram tempos heroicos, plenos de risco e medo. Lula e outros 14 líderes acabaram presos. Hoje, sob fogo baixo e muita fumaça, a peça ganha novo enredo. O chão das fábricas do ABC abriga mãos e braços agora não cruzados, mas movendo máquinas. Os antigos fogueteiros trocaram o casacão suado de metalúrgico e a camiseta do furioso João Ferrador por paletó e gravata. O ex-operário Luiz Inácio, depois de passar oito anos no posto mais alto da República, continua a ter papel central na região (e em outras praças), desta feita patrocinando a reeleição do prefeito de São Bernardo do Campo, Luiz Marinho, também ex-metalúrgico e protagonista daquele ciclo. Hoje, como ontem, bastiões grevistas são montados. A diferença é que agora fustigam o Estado, como se vê na paralisação em sete ministérios (Saúde, Trabalho, Planejamento, Integração Nacional, Desenvolvimento Agrário, Agricultura e Justiça), em agências reguladoras, universidades federais, no sistema Eletrobrás e outros setores.Uma observação se faz pertinente: a teia de greves que cobrem alguns vãos da administração federal é pouco percebida, sugerindo que a sensação de normalidade se explica por não haver plena adesão aos movimentos. Avoca-se outra razão: a máquina é tão inchada que dispensa alguns parafusos para se mover. Argumenta-se ainda que há greves com forte impacto nos consumidores, como as que afetam o abastecimento de alimentos (leite, carne, arroz, feijão) e serviços essenciais (energia, transportes, saúde) e congêneres. Vamos ao ponto: as greves que envolvem 135 mil funcionários públicos federais causam, sim, prejuízos ao País e à sociedade, seja pelo efeito retardado que provocam nas prateleiras da burocracia, seja por prejuízos aos sistemas produtivos, usuários e consumidores. São irrecuperáveis os danos ao universo estudantil com a greve nos institutos e universidades federais. Medidas como o prolongamento do ano letivo não atenuarão os impactos sobre a estrutura educacional. Pior é achar que a vida institucional do País flui naturalmente. A aparente harmonia social tem o condão de esconder os percalços do governo na frente de articulação junto aos setores grevistas. O efeito concêntrico de uma onda de greves poderá abalar a confiança que a sociedade deposita no governo.Chama a atenção a mudança de foco dos movimentos, agora o adversário é o Estado. Lembre-se que, desde o século 19, na esteira da industrialização, o sindicalismo elegia como alvo preferencial os nichos produtivos da iniciativa privada.Os ciclos de greves no País ganharam volume nos períodos de transição política, quando o discurso da inclusão social e da justiça para todos atingiu seu ponto máximo. Escolhiam-se adversários principalmente em espaços de intensa concentração operária, como o ABC, com uso da artilharia nas datas-chave de reajuste salarial. O Estado getulista propiciou a construção da base sindicalista. De lá para cá o sindicalismo, sob a proteção estatal, aprofundou raízes, em particular no Sudeste. Em 1963, às vésperas do golpe de 64, a pauta sindical abrigou 200 greves, alimentando-se da instabilidade política. Dados coletados por Eduardo G. Noronha, em seu estudo sobre Ciclo de Greves, Transição Política e Estabilização: Brasil - 1978/2007, revelam a natureza das passagens: entre 1965 e 1968 (Castelo Branco-Costa e Silva), a média anual foi de 13 greves; entre 1969 e 1977 (linha dura dos militares), nenhuma; entre 1978 e 1984 (abertura política e início do primeiro grande ciclo grevista), a média foi de 214. A greve da Scania em 1978 foi simbólica por demonstrar que as paralisações eram viáveis. A era Sarney foi memorável: a média anual foi de 1.102 greves. No primeiro semestre de 1989, a ausência de regras para reajustes salariais, a proximidade das eleições presidenciais e a ameaça da hiperinflação elevaram os conflitos trabalhistas a níveis inéditos: mais de 2 mil greves. O pico chegou nos tempos tumultuados de Collor, quando a média atingiu 1.126 paralisações. A partir daí, entrou-se na fase de declínio, com a média de 865 greves por ano no primeiro governo FHC (1995-1998) e 440 no segundo (1998-2002). A primeira fase do ciclo Lula (2003-2007), já com as centrais sindicais entrando nas malhas do governo e com o programa Bolsa-Família, amorteceu a onda. A média anual caiu para 322. Como se pode aferir, a cadeia grevista no Brasil foi rompida. Os sindicatos passaram a enfrentar novas realidades, a começar da garantia do emprego. A cabeça do planeta sindical - formada pelas estrelas brilhantes (e sonantes) das centrais - decidiu manter e ampliar "feudos" dentro do poder central. Ademais, encheram seus cofres - em 2011 centrais e federações receberam cerca de R$ 110 milhões do governo. E sem a obrigação de prestar contas. A convocação à greve - é também a leitura que se faz - torna-se dever artificial de ofício para as estruturas. Como convocar, por exemplo, servidores do Ministério do Trabalho à paralisação, se ali estão braços de entidades que formam a constelação sindical? Seria incongruência. O pleito atual dos servidores dos três Poderes custaria, segundo o governo, R$ 92 bilhões. Bancar tal conta em cenário de desaceleração econômica seria mortal para o Tesouro.Último ato da peça: bancários, comerciários, metalúrgicos, químicos e petroleiros têm encontro marcado no segundo semestre com os patrões. Pauta: reajuste de planilhas salariais. Haverá mais fumaça ou mais fogo?    

JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO