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As lições de FHC

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Por Aloísio de Toledo César
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Sempre que vai à sua chácara no município de Ibiúna, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso passa ao lado da cidade de Cotia, mas nunca havia entrado. Dias atrás, a convite do prefeito Carlão Camargo, não só entrou na cidade como fez uma palestra sobre a atualidade econômica, mundial e brasileira, para numeroso grupo de moradores. Chamou a atenção sua invejável disposição física e intelectual. Realmente, faltando apenas um ano para completar 80 anos, Fernando Henrique falou de pé, durante mais de uma hora, sem demonstrar o mais leve cansaço e sem uma única vez perder a fluência do pensamento e das frases. Deixou bem aparente aquela sabedoria que vem da maturidade. A linguagem oral, todos sabemos, por ser menos autopoliciada, costuma levar a maioria das pessoas a repetir palavras na mesma frase, e até mesmo a repetir a mesma frase, num exercício pela busca de clareza. O ex-presidente, com a sua cinquentenária experiência de professor, causou enorme surpresa a todos, tanto pelo conteúdo da palestra como pela clareza do pensamento. Esse desempenho em parte explica o êxito que obteve ao longo da vida como político e administrador público. Agora que nada mais postula em termos pessoais, é curioso observar a sua desenvoltura, em contraste com a de outros políticos acometidos de pantagruélicas aspirações pessoais. Uma coisa em particular, fruto dessa experiência, chamou a atenção na fala do ex-presidente: foi o destaque, no qual insistiu, sobre a necessidade de reforma do Estado brasileiro, para recuperação da eficiência e credibilidade das instituições. Esse ponto de sua fala merece algumas reflexões. De fato, o País convive com a degradação progressiva de algumas instituições e entre elas, forçoso incluir, o Judiciário. Conforme bem lembrou o ex-presidente, com a expressão bastante contrariada, impera entre nós um sentimento coletivo, quase unânime, de que não se pode acreditar na Justiça e de que cadeia não é lugar para rico. Esse sentimento, infelizmente, existe e apresenta a grave consequência de atrair em direção ao abismo (o crime) número cada vez maior de pessoas que não temem ser punidas, enfim, acreditam na impunidade. Por razões históricas e culturais, que remontam ao tempo da Roma antiga, o Direito brasileiro vive um engessamento burocrático e processual que o descola da realidade do País. Em tempos de enorme velocidade no processamento de informações, as decisões judiciais, por força do sistema processual brasileiro, fazem lembrar a surrada imagem do carro de boi e do avião a jato. Talvez não exista outro país no planeta que mais consagre, em seu sistema processual, o respeito à ampla defesa, à liberdade e à igualdade de todos perante a lei. Nossas disposições processuais são maravilhosas e capazes de provocar enorme sentimento de admiração, mas não mais se mostram eficazes para prestar justiça com a rapidez desejável. Graças a esse sistema processual, tão lindo, mas que não funciona e não favorece a agilidade das decisões, cristalizou-se mesmo o sentimento público de que cadeia não é lugar para gente rica. Sempre se ouve dizer que o único rico nas cadeias brasileiras, além de alguns poucos traficantes de drogas, é o ex-banqueiro Salvatore Cacciola. Isso se deve, é evidente, não à benevolência de juízes, mas à competência profissional de advogados que conseguem usar o próprio Direito em vigor para impedir que as pessoas mais poderosas permaneçam atrás das grades, a não ser por pouco tempo. É elementar que esse Direito deve ser modificado. Enquanto a mudança não vem, permanece uma sofrível desigualdade: o mesmo delito, praticado por uma pessoa rica, apresenta consequências diversas, em relação ao mais pobre que o cometeu em mesmo número e forma. O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, vem pregando a necessidade de uma Justiça brasileira igual em todos os Estados, além de sempre ágil. Belíssima a sua pregação, a não ser pelos desmentidos do cotidiano, enfim, pela verdade que nos atropela a toda hora, a de que para quem anda de carroça não é possível chegar depressa a lugar algum. Nós, juízes, infelizmente, massacrados por toneladas de recursos previstos em lei, muitos com propósitos meramente protelatórios, estamos todos frustrados na intenção de decidir e concluir rapidamente os processos. Por disposição que remonta aos primórdios do Estado moderno, a elaboração das leis é ato privativo do Poder Legislativo. A reforma das leis processuais, portanto, sem a qual continuaremos no atoleiro de infindáveis processos, está nas mãos do Congresso Nacional. Mas aqui, conforme bem enfocou o ex-presidente Fernando Henrique na sua palestra, surge problema de maior dimensão, ou seja, a vinculação da vontade dos congressistas unicamente a temas de interesses de grupos, sejam de políticos, sejam de empresários ou associações. Ocorre o que em Direito se chama desvio de finalidade, ou seja, o Congresso passa a legislar por impulsos de interesses, e não conforme a programação dos partidos políticos, até porque estes se diferenciam tão somente por força das pessoas que os integram. De forma quase amarga, Fernando Henrique, que sempre foi conhecido por suas preferências marxistas, lembrou que no mundo de hoje o sonho de desfez. Não há mais utopia, não há mais programas que diferenciem os partidos, mas tão somente ações pessoais dos congressistas, em favor de interesses que não são exatamente os mesmos do País. Talvez o velho professor tenha razão quando se ressente da falta da velha utopia, de uma filosofia que representasse traço de união para um povo, mas é sempre bom atentar para a realidade presente: os países que mantiveram a utopia são prisioneiros das piores ditaduras do mundo (Cuba, Coreia do Norte e Irã). É um tema bom para reflexões. Aloísio de Toledo César é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo E-mail: aloísioparana@ip2.com.br