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Opinião|As múltiplas faces da crise fiscal

A recuperação da economia e a melhoria das perspectivas de crescimento para os dois próximos anos concorrem para aliviar as preocupações dos responsáveis pela administração das contas públicas

Atualização:

A recuperação da economia e a melhoria das perspectivas de crescimento para os dois próximos anos concorrem para aliviar as preocupações dos responsáveis pela administração das contas públicas, com respeito às possibilidades de cumprimento das metas fiscais. Mas a pergunta que não quer calar é qual é a chance de sustentar o crescimento na ausência de providências para corrigir os desequilíbrios estruturais que se acumularam nas três décadas posteriores à vigência do texto constitucional promulgado em 1988.

No processo de elaboração da nova Constituição, o princípio da escassez foi ignorado com a desmesurada ampliação das responsabilidades do Estado, sem que a devida atenção fosse dispensada à recomposição das condições requeridas para assegurar o equilíbrio no exercício dessas responsabilidades.

A única mudança importante introduzida na legislação orçamentária com potencial para evitar o desastre, materializada na introdução da Lei de Diretrizes Orçamentárias, foi logo abandonada por não despertar a atenção das autoridades governamentais nem dos principais grupos de interesses que estavam bem representados nos trabalhos da Constituinte. Em decorrência, o desdobramento dos fatos que se seguiram aos primeiros momentos posteriores à vigência dos novos dispositivos constitucionais foi determinado pelas particularidades do novo regime de financiamento do Estado e pelo modelo de gestão fiscal adotado em meados dos anos 1980, e reforçado no final dessa década, para evitar a prematura falência do Plano Real.

A rigidez da despesa é a face mais visível da crise fiscal, mas está longe de ser a única. Por ser a que ganhou destaque, ela contribuiu para as deformações que se formaram nas outras faces dessa crise, que se referem ao desequilíbrio na capacidade de atendimento dos direitos sociais inscritos na Constituição, à multiplicação dos conflitos federativos e aos prejuízos que a má qualidade do regime de financiamento do Estado traz para a economia.

O foco numa de suas faces direcionou as atenções à busca de meios para mitigar seus efeitos, que foram ficando cada vez menos eficazes à medida que o problema se tornava mais acentuado e as terapias aplicadas se revelavam impotentes para corrigir as deformações. Com a perspectiva de iminente colapso, surge a oportunidade de buscar outro caminho para tratar do problema, mediante a análise das inter-relações dos diversos componentes que concorreram para seu progressivo agravamento, de modo a formar um novo entendimento sobre os procedimentos a serem adotados para o encaminhamento de uma solução definitiva para ele.

Para tanto é preciso reconhecer que o equilíbrio no exercício das responsabilidades do Estado depende de um orçamento que reúna os recursos necessários para o seu financiamento, de regras que organizem o processo de alocação dos recursos aos gastos requeridos para executar as ações necessárias em cada caso e de um modelo de gestão orçamentária que trate de garantir o equilíbrio orçamentário tanto no plano agregado das receitas e despesas quanto no tocante ao atendimento das distintas responsabilidades a ele cometidas pela Constituição. Num regime federativo, o equilíbrio orçamentário também depende de como as responsabilidades e os recursos necessários para exercê-las são repartidos entre os entes federados.

No nosso caso, uma regra fundamental foi quebrada. A alocação dos recursos não se dá no processo orçamentário, sendo predeterminada pelas particularidades do regime de financiamento vigente, que se manifestam na criação de um regime próprio para o financiamento de parte das responsabilidades do Estado amparadas na chamada seguridade social, na vinculação constitucional de alguns tributos ou da totalidade da receita tributária a gastos específicos, na multiplicação de direitos individuais regulados por normas determinadas exogenamente ao processo de alocação das despesas e na busca incessante de outros meios para garantir acesso preferencial à pequena parcela das receitas orçamentárias que ainda resta para ser alocada.

A resultante rigidez do gasto, que foi se acentuando ao longo do tempo, e a recorrente necessidade de lidar com crises econômicas, num contexto de acentuada fragilidade fiscal, levaram ao progressivo reforço de um modelo de gestão fiscal orientado exclusivamente pela busca de meios para evitar o descumprimento da meta fiscal, deixando de lado as implicações desse fato para o crescente desequilíbrio nas prioridades orçamentárias e para a criação de um ambiente hostil à eficiência e eficácia na gestão das políticas públicas relevantes para o futuro da Nação.

Adicionalmente, a contínua dependência de aumento nos tributos federais vinculados à seguridade social para atender, ainda que parcialmente, às necessidades de cumprir as metas para o resultado primário das contas públicas promoveu a recentralização da carga tributária e das decisões sobre as principais políticas públicas, com a consequente ampliação dos desequilíbrios e dos conflitos federativos e das dificuldades para equacionar a crise fiscal que se abate sobre os entes federados.

As múltiplas faces da crise fiscal demandam uma agenda de reformas que trate simultaneamente das interdependências apontadas. Não cabe tratar separadamente cada uma delas, como se fossem independentes. Dado que o principal responsável pela rigidez da despesa é o regime de financiamento do orçamento, não é possível ignorar a importância da reforma tributária para corrigir esse problema e abrir espaço para que o modelo de gestão orçamentária passe a levar em conta a necessidade de reduzir os desequilíbrios nas prioridades da Nação, de modo a recriar as condições necessárias ao equilíbrio federativo e à eficiência da gestão pública.

* ECONOMISTA, PROFESSOR DA ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS DA FGV, FOI PRESIDENTE DO IPEA

(Este artigo expressa opiniões pessoais do autor, não representando, necessariamente, a opinião institucional da FGV.)