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Opinião|As praias cariocas e a política

Atualização:

A linguagem das ruas registra o uso da expressão “desgraça pouca é bobagem”, pois se não nos bastasse conviver com a ração amarga que diariamente nos é servida, vinda da polícia e dos tribunais sobre o atual estado de coisas degradado da nossa política, somam-se, agora, as notícias do circo de horrores que tomou conta das praias cariocas. Seus protagonistas são jovens pobres das periferias e das classes médias da zona sul, envolvidos num cenário clássico de gangues juvenis em disputa por território.

O conflito entre eles tem data marcada, os fins de semana ensolarados, quando bandos de jovens das periferias se apinham nos ônibus e começam a encenar no espaço público os rituais com que alardeiam o ressentimento que lhes dói na alma numa cidade que os exclui. A diversão não está nos folguedos praieiros, mas no ato da ocupação do território que lhes é estrangeiro e naturalmente hostil por significar uma marca de distinção entre os de dentro e os de fora da cidade. Em reação a eles, os jovens naturais do lugar os recebem com ações violentas de grupos organizados, e tudo se passa como uma teatralização selvagem de luta de classes diante de um público incerto em tomar partido entre os dois litigantes.

É preciso estar no mundo da lua para não ligar essas duas pontas, como se a política fosse ingênua a elas. A socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, em artigo seminal ainda nos idos de 1995, caracterizou essa síndrome como a de cidade escassa, aludindo com essa expressão à afluência em massa para a cidade de setores sociais historicamente dela apartados, vivendo nas periferias destituídas de equipamentos públicos de toda sorte, os de lazer incluídos. O contato entre essas duas partes da cidade, como inevitável, tem-se dado pelos seus pontos mais sensíveis, ora de forma velada, ora aberta, como nesses atuais incidentes conflituosos na orla carioca, e não por que falte espaço físico – os direitos é que são escassos.

Não são necessárias antenas de grande precisão para detectar esses pequenos abalos sísmicos que têm atuado sobre setores subalternos da nossa sociedade, visíveis nas manifestações dos grupos autodesignados pelo prefixo sem – sem-terra, sem-teto – e mal camuflados nessas aparentes simples travessuras de adolescentes da periferia do Rio. Esses abalos são registrados em toda parte, não só nos grandes centros urbanos, e sua tradução não pode ser feita à margem do código da política, na medida em que podem estar indicando algo de mais grave – judiciosa sugestão de Tocqueville. Aí, uma chave de leitura que nos remete a temas como o do Estado, de sua falta, tal como na enérgica denúncia das jornadas de junho de 2013, o de uma política “que não nos representa”, e o da ausência de valores cívicos que não contam, faz tempo, com a animação dos partidos políticos, encapsulados na trama de interesses particularistas dos seus dirigentes, na ambição de ganhos materiais ou de poder pelo poder.

Somos um caso clássico de uma modernização que não concedeu espaço para o moderno. Na era Vargas, quando se inicia de modo planejado a intervenção do Estado para os fins da modernização econômica, em particular no regime de 1937, embora o associativismo dos trabalhadores tenha sido posto sob tutela de agências estatais, não se descuidou da dimensão ética, concebendo-se os sindicatos como instâncias de transmissão de valores, entre os quais o de valorização do trabalho como elemento essencial para uma vida digna dos subalternos urbanos.

Nesse registro, o modelo autoritário da fórmula corporativa então vigente, mesmo que centralmente orientado para o exercício da coerção, concebeu práticas a fim de reforçá-lo com a introdução de elementos consensuais. Na perspectiva da época, o objetivo em mira era o da indução da harmonia entre o mundo do trabalho e o capital sob os auspícios da ação estatal. Muito dos seus fundamentos, como se sabe, foram preservados no regime de 1946, como sempre denunciou a opinião democrática, inclusive a dos sindicalistas do ABC.

O surto de modernização trazido pelo regime militar subverteu essa modelagem, instrumentalizando-a sans phrase para seus fins de aceleração do crescimento econômico, deixando como herança uma sociedade civil que, embora emergente, como se viu nos episódios pelas Diretas-Já, entre outros, se encontrava destituída de valores cívicos e desencontrada das instituições democráticas que ainda subsistiam. Em suma, aquele novo giro da modernização burguesa no Brasil, escorado na repressão do que havia de organizado na sociedade civil, tinha destampado um individualismo selvagem, em que cada qual apenas reconhecia como legítimos os seus apetites, mesmo que em desacordo com as leis.

A Carta de 88, uma decidida aposta no moderno, inicia sua trajetória nesse vácuo de cidadania que não à toa foi determinante para o desastre da sucessão presidencial de 1989. Com o impeachment de Collor, sob os mandatos de Itamar e Fernando Henrique o espírito que a animava inicia seu lento processo de materialização, augurando-se para ele um andamento ainda mais rápido com a candidatura de Lula pelo PT na sucessão de 2002, então identificado com uma história de denúncia do processo de modernização brasileiro, até mesmo de muitas de suas principais instituições, como a CLT.

O programa do moderno, sem dúvida, não era de fácil realização – demandava tempo e não facilitava uma reeleição, mas deixaria, de qualquer modo, um lastro positivo. Nada, porém, poderia ser pior que o cavalo de pau que nos devolveu ao ciclo da modernização sem alma, que ora jaz moribundo sem que o moderno dê sinais de que ainda vive. E não será dos restos insepultos do sistema político que aí está que poderá renascer. Nessa desordem em que recaímos, não há juiz Sergio Moro que nos livre. E, pelo que se vê, nas praias também não há quem nos acuda.

*Luiz Werneck Vianna é sociólogo pela PUC-Rio

Opinião por Luiz Werneck Vianna