17 de maio de 2015 | 03h00
Afirmação corajosa, ainda mais que se presta a contestações fáceis em certos ambientes de esquerda – mas não em toda ela! – nos quais o antiamericanismo constitui patologia renitente, a embaçar análises diferenciadas sobre o papel global daquele país no século 20 e neste início de 21, ora esteio das liberdades, como na crucial aliança antinazista, ora promotor de ditaduras até em seu “quintal”, com a arrogância própria de toda potência dominante.
O ministro Unger, sem desprezar a casa comum sul-americana, embora sugira redimensionar por ora o escopo do Mercosul, admite que os dois grandes países, com povoamento europeu e forte marca da escravidão, apresentam ainda semelhanças inquietantes na questão social. Dispensável dar exemplos da obscena injustiça brasileira. E basta correr os olhos sobre boa parte da produção acadêmica norte-americana para pinçar, como um mantra nada tranquilizador, a expressão “crescentes desigualdades”, a empanar a ambição de constituir vasta nação majoritariamente de classe média, como pareceu possível com a intervenção rooseveltiana, nos anos 1930, e os programas da “grande sociedade”, nos anos 1960.
Tais crescentes desigualdades, numa leitura economicista, estariam na raiz da crescente radicalização política naquele país, dividido, há já algumas décadas, entre dois blocos – há quem diga duas “culturas” e até duas visões de mundo – inconciliáveis. De um lado, os “liberais”, mais próximos de uma visão positiva do Estado como regulador da economia e estimulador, como mostra o “Obamacare”, de uma rede proteção para os mais pobres; de outro lado, os conservadores, defensores da retração do Estado regulador, ainda que estimulem gastos com a defesa bem mais altos, numa espécie de keynesianismo militar, e defensores, também, de menos impostos para os mais ricos e redução dos programas sociais clássicos, como a seguridade e a assistência de saúde.
Sem desconhecer as diferenças entre os dois contextos, o de uma antiga democracia e o de uma democracia que mal completa 30 anos, talvez possamos considerar a realidade norte-americana como uma advertência sobre males que ainda seja possível evitar ou, mais realisticamente, atenuar por aqui.
Paul Krugman fala, a respeito de seu país, de um nível de polarização não atingido desde a Guerra Civil. Ronald Dworkin alarmou-se, em alguns de seus últimos trabalhos, com o estado de conflito permanente entre azuis (democratas) e vermelhos (republicanos), que fez decair a vida cívica a patamar inédito: sem um terreno comum entre os contendores, que, apesar de tudo, ele se obstinava em reconstruir, o filósofo enxergava a esfera pública, nos anos de George W. Bush, como carente de qualquer discussão racional “decente”.
Acumulavam-se, então como hoje, conflitos sobre política econômica e sobre valores, sobre temas estritamente materiais e outros de caráter fortemente simbólico, como o papel da religião na comunidade política, o aborto ou o casamento homoafetivo. Essas discussões são legítimas e provavelmente, ainda que com novas roupagens, sempre se reapresentarão. O que é menos legítimo, ou desejável, é que sejam vividas como “guerra de valores” ou “choque de culturas” avessas ao diálogo e às áreas de consenso. Este último, naturalmente, só pode ter a forma de compromisso sob o signo da liberdade e da igualdade entre todos os indivíduos – elementos fundadores da grande nação do Norte.
Olhando-nos no conturbado espelho norte-americano, vemos sinais, ainda que neste caso negativos, de complementaridade e afinidade, para usar as expressões iniciais de Mangabeira Unger. Também entre nós sopram os maus ventos do radicalismo. Trata-se de processos muito diversos, mas o fato é que a bem-vinda ascensão de uma esquerda ao poder, a partir de 2003, não cancelou nesta esquerda as marcas de seu primitivo “espírito de cisão”, com o qual quis contrapor-se a toda a História anterior do País, vista como uma sucessão de males e desastres.
Tal espírito, compreensível em estágio inicial de um partido com vocação de poder, termina por deixar marcas na forma de conceber alianças, combater adversários ou exercer o poder. Degrada-se em espírito de facção e corrói a dialética democrática. Molda à sua imagem e semelhança toda uma cultura política, dando-lhe os trajes do integrismo e da intolerância. Lá, os republicanos tomaram a iniciativa da radicalização e do confronto, papel aqui paradoxalmente desempenhado pela subcultura petista. Nenhuma novidade nisso: afinal, como se sabe, conteúdos ideológicos antagônicos podem encarnar em estruturas mentais assemelhadas.
Não há quem fale a sério em duas “visões de mundo” em conflito de vida ou morte, mas já há um simulacro de guerra no debate brasileiro. Nem por ser só retórico, o repertório bélico deixa de ser nocivo à troca acesa de argumentos que, como modelo ideal, deveria reger as relações entre atores políticos e sociais.
Mais grave: o ator de esquerda, entre nós, terá perdido por muitos anos qualquer verdadeira capacidade hegemônica à moda de Roosevelt, tornando-se, ao contrário, fator de involução da vida em democracia.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil/site:www.gramsci.org
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