Imagem ex-librisOpinião do Estadão

As vozes da boçalidade

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Por Redação
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O debate público no Brasil está em adiantado processo de decomposição. Faz lembrar o rancor político que se adensou no País entre a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, o que levou ao governo o seu vice getulista João Goulart - mediante um acordo insustentável que condicionou a sua posse à adoção do parlamentarismo - e desembocou menos de três anos depois no golpe que abriu as portas à mais longeva ditadura da história nacional. Esse desfecho não está obviamente nas cartas, apesar das fantasias das vivandeiras do autoritarismo. O País é uma democracia que deixa a desejar em muitos aspectos, mas não há forças sociais ou políticas dignas do nome se articulando para a sua abolição. A adesão à ordem democrática, conforme atestaram recentes pesquisas já comentadas neste espaço, supera folgadamente a indiferença a seu destino e, mais ainda, a crença de que, em determinadas circunstâncias, um regime de força possa ser preferível. Nem por isso são toleráveis, que dirá aceitáveis como fatos corriqueiros no embate político, manifestações de autoridades ou detentores de mandatos eletivos em que a boçalidade faz as vezes de contundência legítima. Fazendo jus à história de seu partido - que carrega a duvidosa distinção de ter sido o primeiro, no Brasil redemocratizado, a tratar os adversários como inimigos a serem abatidos a golpes de soco inglês -, ninguém menos do que o petista Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, se permitiu imitar publicamente, em palácio, as baixezas que circulam nas redes sociais, de ambos os lados da divisa ideológica. O pretexto foi um evento com associações e cooperativas de agricultura orgânica, cujos representantes decerto não imaginavam o que iriam ouvir do membro de primeiro escalão de um governo, segundo ele, vítima de "perseguição e discriminação". Isso porque o PT estaria fazendo o Estado funcionar "em função da maioria" e teria sido isso que "esteve em disputa nessa eleição". Em represália, o governo seria alvo de "um monte de merda que os caras falam". A expressão não combina exatamente com o perfil de católico praticante de que o ministro faz praça, mas o pior estava por vir. O termo chulo serviu de preâmbulo para o insulto que dirigiu ao derrotado candidato tucano ao Planalto, senador Aécio Neves. "Eu morria de medo do playboyzinho ganhar a eleição", admitiu, "porque eu tinha clareza de que ia acabar essa energia que está aqui nesta sala." Energia produzida a partir de esterco, naturalmente. Como quem diz o que quer ouve o que não quer, Carvalho se expôs ao esperado revide de Aécio, que lembrou o envolvimento do petista com as denúncias de corrupção em Santo André, que culminaram com o assassínio, em 2003, do então prefeito Celso Daniel, de quem o atual secretário da presidente Dilma Rousseff era o assessor mais próximo. O PT fez tudo o que sabia e mais alguma coisa para descarrilar as investigações do caso. Embora Aécio tenha visado o ponto mais sombrio da carreira do carola, guardou-se de contribuir para a galopante degradação do discurso político no País. Quem o fez, na mesma terça-feira, do lado do que a oposição tem de mais hidrófobo foi um deputado conhecido pelo primitivismo e a truculência. No próprio plenário da Câmara, depois de a também deputada e ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, defender em discurso a Comissão Nacional da Verdade, o pepista Jair Bolsonaro - raivoso partidário do regime de 1964 e defensor da volta dos militares ao poder - repetiu o que teria dito em outra ocasião, anos atrás, quando ela o teria chamado de estuprador. "Eu falei que eu não estuprava você porque você não merece", atacou. A bancada do PT deve entrar com representação contra o agressor na Comissão de Ética da Casa. Congressistas não podem ser processados por suas opiniões, palavras e votos. Mas podem perder o mandato por quebra do decoro parlamentar. Não se trata de escolher, entre Carvalho e Bolsonaro, quem mais acaba de contribuir, cada qual no cerne de dois dos Poderes da República, para o aviltamento do confronto político inerente à democracia. Um e outro nos envergonham a todos.