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Avanço sobre o espaço público

Além de tentar coibir um abuso que vem se repetindo, a legislação sobre portões obedece a um princípio – eliminar “obstáculo à circulação livre e segura de pedestres”

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Por Redação
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O decreto do prefeito Bruno Covas que, regulamentando lei aprovada pela Câmara Municipal, proíbe que portões ou cancelas automáticos invadam a calçada, ao fechar ou abrir, traz de volta uma discussão da maior importância para os paulistanos, que vai muito além desse caso específico: a do avanço de particulares sobre o espaço público. Um abuso que se tem difundido nos últimos anos e muitas vezes – o que é particularmente grave e preocupante – até mesmo com amparo legal. É nessa perspectiva mais ampla que a questão deve ser considerada.

O objetivo da medida é evitar que os portões – abram eles no sentido vertical ou horizontal – invadam área pública e coloquem em risco os pedestres. Os proprietários dos imóveis que se enquadram nesse caso terão seis meses para se adaptarem às novas regras, adotando para isso uma das opções oferecidas pelo legislador. Quem não o fizer receberá multa de R$ 250, que poderá ser repetida a cada 30 dias enquanto a irregularidade persistir.

A providência mais radical é mudar o tipo de portão, para que ele abra para dentro do imóvel, sem obstruir a calçada. Há opções mais baratas, como a instalação de sensores eletrônicos para detectar a passagem de pessoas ou veículos e interromper a movimentação do portão, ou então colocar sinal sonoro a ser acionado a 15 segundos da movimentação do portão para alertar os passantes. Essas opções e o valor razoável da multa mostram que o legislador tenta facilitar a solução do problema.

Além de tentar coibir um abuso que vem se repetindo, a legislação sobre esses portões obedece a um princípio – eliminar “obstáculo à circulação livre e segura de pedestres” – que remete a casos muito mais graves de apropriação de espaço público. Por isso, essa é uma boa ocasião para recolocá-los em discussão. 

Têm-se multiplicado de maneira inquietante os exemplos de grupos que, com inacreditável benevolência da Prefeitura e da Câmara Municipal, avançam sobre bens públicos, sob os mais diversos pretextos. Um dos mais antigos e graves é o do fechamento de ruas e vilas, nas quais são criadas restrições à circulação de pessoas e veículos, de acordo apenas com os interesses dos moradores desses locais. 

Os argumentos em favor de tal abuso vão desde a necessidade de proteger os moradores da violência, que se tornou um dos grandes problemas da cidade nas últimas décadas, até a alegação de que se trata de vias sem impacto no trânsito da região em que se situam. Esses feudos começaram a se difundir de maneira claramente irregular, mas, como em geral são integrados por pessoas influentes, acabaram por conseguir que a Câmara Municipal os regularizasse por meio da Lei n.º 16.439, de maio de 2016, sancionada pelo prefeito Fernando Haddad, com alguns vetos que não alteraram a sua essência. Ela consagrou o abuso e ainda criou regras que permitem que os feudos continuem a proliferar.

Nem por isso essas ruas e vilas fechadas deixam de ser inaceitável apropriação de espaço público e uma ameaça à convivência civilizada na maior cidade do País. Quando alguns julgam ter mais direitos que os demais – que pagam exatamente os mesmos impostos que eles – e conseguem consagrar em lei esse privilégio, a porta começa a se abrir para perigosa lei do mais forte.

Não admira que o mau exemplo seja logo seguido, de formas diversas. Um exemplo é o dos parklets, criados como extensão das calçadas, inspirados em experiência americana. Aqui eles acabam se incorporando de fato a bares e restaurantes diante dos quais são implantados. 

O mesmo se aplica à invasão de calçadas – em escala cada vez maior – por mesas e cadeiras de bares e restaurantes. Da lei que autoriza essa prática quase nunca é obedecido o dispositivo que manda deixar espaço para a circulação dos pedestres. A inspiração são cidades europeias, mas nelas, ao contrário daqui, as restrições são obedecidas e o uso desse espaço é pago.

É preciso pôr fim à apropriação de espaço público por particulares, porque São Paulo não pode virar terra de ninguém.