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Bolhas, paradigmas e arquiteturas

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Por Lourdes Sola
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A perspectiva de uma desaceleração econômica maior do que foi antecipada pelo governo desarmou de vez sua estratégia de comunicação política, que de ofensiva passa a defensiva. De um só golpe as cifras desautorizam os "diagnósticos" e a qualidade técnica dos discursos que compunham o quadro otimista - as reações espertas do tipo "o problema é do Bush", a metáfora da "marolinha" e a imprudência de reiterar uma taxa de crescimento implausível para 2009. Estourada a bolha otimista, as incertezas do cenário econômico impõem sobriedade e coerência ao governo e a seus críticos. Afetam os cálculos eleitorais e abrem espaço para uma revisão dos cálculos políticos de longo prazo, ou seja, para as estratégias a partir das quais se constroem (e reconstroem) a imagem e a tradição dos partidos entre outras instituições. Dessa perspectiva, a variável relevante é a construção de uma agenda pública viável, que organize as respostas ao novo cenário político-econômico. Mas a eficácia de uma agenda propositiva depende também de sua forma de apresentação e de seu timing, portanto, da estratégia de comunicação política. Nem governo nem oposições se preparam para tanto, porque não superam os termos em que se dá a concorrência eleitoral. Estão pautados pela dominância midiática do presidente Lula e pelo uso intensivo dos recursos políticos à sua disposição. Quando muito invoca-se uma "mudança de paradigma" - (mal) entendida como a volta à prevalência do Estado sobre o mercado - toda vez que estão em pauta questões como disciplina fiscal, qualidade dos gastos e o sistema de privilégios incrustados no Estado. A falta de empenho de uns e outros na construção de uma agenda propositiva tem uma explicação: os termos por onde passa o debate sobre ela já mudaram, mas os mapas cognitivos continuam defasados, por conveniência, rigidez ou ideologia. A crise global, de fato, ilumina uma mudança na equação Estado-mercado, mas não há como inferir a natureza do "novo paradigma" - expressão que denota um sistema estável e sustentável. Ironicamente, trata-se de uma metáfora equivalente àquela de "arquitetura financeira", ainda cultivada pelos ideólogos do mercado e arautos da desregulação financeira radical. Uma metáfora que serviu para assegurar que o sistema pós-Bretton Woods (1972-2008) - por definição, instável e movediço, um "não-sistema" - tinha as qualidades de um bom edifício: solidez, funcionalidade e, se possível, elegância. Deu no que deu. O cenário político-econômico global impõe uma mudança de perspectiva, sim, mas a partir de um diagnóstico sensível aos contextos e às trajetórias específicas. A nossa estará pautada por duas grandes transformações: pela forma de inserção do Brasil no sistema internacional e pela nova forma que adquire o conflito distributivo no novo cenário econômico. As novas formas de inserção do Brasil no sistema internacional incluem, mas não se esgotam na invulnerabilidade comparativa a choques externos. Derivam de uma mudança no eixo do poder econômico global, com destaque para dois dos demais Brics, a China e a Índia, cuja ascensão se explica também por suas respectivas trajetórias de integração à economia global. No caso do Brasil, ela é um subproduto de dois processos que pautaram a agenda pública nos anos 90. Por um lado, a integração à economia global por meio da liberalização gradativa do comércio internacional e do sistema financeiro, que, somados à política seletiva de privatizações, redundaram numa mudança significativa na equação Estado-mercado, a favor do segundo termo. Por outro lado, a construção gradual e negociada de um sistema institucional moderno de regulação e de supervisão financeira - que explica o baixo risco de uma crise bancária entre nós - reflete o papel disciplinador do Estado como poder público, nessa esfera específica. Esses são desdobramentos que o presidente Lula se empenha em valorizar aos olhos do G-20 e do presidente Obama, embora inseparáveis da herança bendita. Dessa perspectiva há espaço para otimismos, desde que se reconheça o seguinte: tais mudanças estruturais explicam porque o Brasil tem interesse direto na "globalização". A rejeição do protecionismo (dos ricos) a ser reiterada na cúpula do G-20 não é marola, tem bases em interesses socioeconômicos já consolidados e corresponde ao interesse nacional. Numa democracia de massas o consumidor-eleitor tem duas vozes, que não falam no mesmo tom. O consumidor já acusou o golpe e redefine seus hábitos. As reações do consumidor-eleitor dependerão das estratégias de persuasão empregadas pelas forças políticas em jogo e da credibilidade das instituições a partir das quais essas forças se manifestam (em queda livre no Legislativo). A frustração e a incerteza típicas dos tempos de vacas magras levarão nosso ator a ser mais atento a dois desdobramentos: aos mecanismos da corrupção e aos sistemas de privilégio articulados em torno do Estado. Minha aposta é que, junto ao crescimento, a questão distributiva ocupará o centro do palco político, sob nova roupagem. Para além da desigualdade da renda e da inclusão social - que é também inclusão no mercado consumidor, aqui como na China -, o foco deverá incidir também sobre a redistribuição de penalidades e de privilégios que se articulam em torno do Estado. A opinião pública estará mais sensível aos outros ingredientes que compõem a justiça distributiva: aos mecanismos de prestação de contas que o sistema político deixa de oferecer, às reivindicações de maior igualdade perante a lei e ante o Leão. As respostas a essa nova sensibilidade podem redundar em aprimoramento das instituições ou em caça às bruxas, que já é o grande risco dessa oportunidade. Lourdes Sola, professora da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências, é presidente da Associação Internacional de Ciência Política, do conselho diretor da Global Development Network, da International Institute for Democracy and Electoral Assistance e do Instituto Internacional de Ciências Sociais