Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Brasil global

Exclusivo para assinantes
Por Ilan Goldfajn
4 min de leitura

A visão global ou a relativa, eis a questão. A global ainda recomenda cautela em todos os cantos do mundo. A relativa vê no diferencial do Brasil uma saída melhor no pós-crise. A global há pouco mostrou-se dominante; afinal, a recessão no Brasil é fruto da quebra do Lehman Brothers, ocorrida nos EUA. A relativa impulsiona uma visão construtiva do País, baseada nos avanços institucionais dos últimos 15 anos, que incentiva os investimentos no Brasil no que diz respeito a outros países. O cenário para a frente depende das duas forças. Em particular, o montante de fluxos de capital para o País depende da atratividade relativa do Brasil versus a escassez global de crédito, fruto da crise. O bolo ficou menor, mas será que a fatia de fluxos de capital para o Brasil pode aumentar? Os últimos dados fornecem uma pista. O total de fluxos de capital no mundo caiu 54% no primeiro trimestre de 2009 (em relação ao mesmo período no ano passado), segundo dados preliminares da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Ao mesmo tempo, o investimento direto no Brasil já acumula US$ 11,2 bilhões até maio e, em 12 meses, atingiu US$ 42,3 bilhões (comparado com US$ 38 bilhões em maio do ano passado). Como proporção do produto interno bruto (PIB), o investimento direto alcançou 3,08% do PIB, o nível mais alto desde fevereiro de 2003. A participação dos fluxos no Brasil no total dos investimentos no mundo subiu para 2,4% no primeiro trimestre de 2009 (de 1,9% em 2007). A fatia do bolo para o Brasil, de fato, está ficando maior. Mas o interessante é que o aumento dos fluxos não é a despeito do movimento global. É reforçado por ele. Para entender esse ponto é essencial avaliar como o mundo vai estruturar-se após a crise, quais serão as pressões globais e qual o papel que o Brasil poderá desempenhar nessa nova estrutura. Em primeiro lugar, é importante perceber que o crescimento no mundo, especialmente depois de esgotados os impulsos fiscais e monetários, deverá ser menos intenso do que nos últimos anos. Isso resulta de uma combinação de fatores. A queda da riqueza financeira no mundo, a dificuldade na volta do crédito bancário nos países maduros e, por consequência, a necessidade de recompor a poupança nos EUA reduzem a demanda americana. A incerta transformação da China numa economia de consumo põe dúvidas sobre a demanda global. Em segundo lugar, os emergentes devem assumir um papel mais central na retomada. No momento, a China continua reagindo com mais da mesma política. Sob considerável impulso fiscal e monetário, está poupando e investindo mais. Com isso alavanca o crescimento - o seu e o da região. O Brasil tem-se beneficiado pela retomada de atividade na China, assim como por sua política de recomposição de estoques de commodities. Dentre os emergentes, a Ásia - e o Brasil - estão retomando mais rápido do que os demais emergentes, principalmente os do Leste Europeu, que revelaram deficiências na crise. O papel dos emergentes torna-se fundamental com a provável retração do consumidor americano (em função da queda da riqueza, do crédito e da renda e das dívidas elevadas). Uma retração prolongada do consumo nos EUA vai reduzir a demanda por bens em todo o mundo. Significa menos exportações, diminuição nos superávits comerciais e queda do dólar ante as outras moedas. Significa, também, uma pressão por maior consumo nos demais países. Mas a quem caberá o papel de exportar menos e consumir mais? A China é uma candidata natural, mas a redução da poupança por lá será lenta e condicionada às reformas. Provavelmente, haverá pressão global para encontrar a contraparte para o ajuste americano: o mundo estará à procura do consumidor de última instância (veja, neste tópico, a Carta do Economista-Chefe do Itaú Unibanco de julho). Economias com maior potencial de crescimento do mercado interno (consumo) e baixo risco tenderão a receber mais capitais e suas moedas, a se apreciar em relação ao dólar. Nessa busca global pelo consumidor de última instância, o Brasil é candidato natural a ser receptor maior de capitais. Haverá pressão para apreciação da sua moeda (versus dólar) e aumento do déficit externo. Esse cenário é reforçado na medida em que o Brasil passou bem pela crise financeira internacional, um verdadeiro teste de estresse para as economias. As reservas internacionais revelaram-se de bom tamanho, a intervenção foi bem-sucedida e não surgiram reavaliações sobre o tamanho da dívida externa (como na Rússia). O sistema financeiro mostrou-se sólido. Finalmente, após anos de consolidação do arcabouço macroeconômico, houve espaço para uma política monetária anticíclica, no combate à crise. O Brasil tem dificuldades para elevar sua poupança, mas tem consumo, projetos de investimento e, mais recentemente, um ambiente de menor risco para financiadores externos. Nesse sentido, um aumento de fluxos de capitais para o Brasil é consistente com um cenário global em que se busca a contraparte da melhora no déficit externo americano (quem vai reduzir seu superávit ou aumentar o seu déficit para compensar?) e da queda do dólar (quem vai apreciar?). Em suma, a visão de que o Brasil poderá obter ganhos relativos no pós-crise não é incompatível com um cenário global mais desafiador. Um aumento dos fluxos de capital para emergentes como o Brasil é o que se espera num mundo em busca do consumidor final de última instância. A consequência é uma pressão para apreciação cambial do real e, como resultado do maior crescimento relativo e da apreciação, pressão para gerar déficits externos maiores. A pergunta é se estamos prontos - intelectualmente e economicamente - para lidar com esse possível cenário. Ilan Goldfajn é economista-chefe do Itaú Unibanco. E-mail: vdandreiolo@itaubba.com.br