Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Cachaça boa, 'marvada' pinga

Exclusivo para assinantes
Por Xico Graziano
3 min de leitura

A cachaça é um verdadeiro patrimônio nacional. Quem afirma é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no prefácio de belíssimo livro lançado recentemente por Araquém Alcântara e Manoel Beato. Em tempos de carnaval, cabe homenagear a mais brasileira das aguardentes. Fama de cachaceiro Fernando Henrique não carrega. Mas, como sociólogo, argumenta ser a cachaça "parte antiga" da História brasileira, peça importante da cultura ligada aos caboclos da terra. Por esse motivo, aliás, o Decreto 4.062/2000, de sua lavra, define o termo "cachaça" como vocábulo de origem exclusivamente brasileira. O ato oficial procurou, na época, impedir que os Estados Unidos incluíssem a bebida, por interesses comerciais, na mesma categoria do rum. Nada a ver. Elaborada a partir da fermentação do caldo da cana-de-açúcar, a cachaça surgiu nos rudimentares engenhos logo após o Descobrimento. Quem a apreciava eram os escravos e colonos, enquanto a elite da época, é óbvio, tomava vinhos e se embriagava com a bagaceira - um destilado de uva, semelhante à cachaça - trazida de Portugal. O ciclo da mineração nas Minas Gerais, deslocando o eixo econômico e populacional para o Sudeste do Brasil, parece ter trazido estímulos ao consumo da aguardente de cana-de-açúcar. Uma das razões estava no clima, mais frio nas serras mineiras do que na Zona da Mata nordestina. Uma mordida na rapadura, um gole da branquinha ajudavam a aguentar a dureza do trabalho e a espantar a friagem noturna. A preferência popular - e o preço barato - permitiu à caninha conquistar fatias mais amplas da sociedade colonial, atrapalhando os vendedores portugueses da bagaceira. Estes pressionaram a Corte a proibir por aqui, em 1659, a produção e o consumo da aguardente de cana. Tudo em nome da ordem, é claro. A esdrúxula medida provocou revolta na colônia e a proibição acabou revogada poucos anos depois. Pesadas taxas de arrecadação foram tentadas para sufocar a produção, mas tampouco se efetivaram na prática. Não houve o que segurasse a expansão dos alambiques. Sinônimo de brasilidade, a cachaça mais tarde frequentaria a mesa dos Inconfidentes, virando símbolo de resistência contra a dominação portuguesa. Na Semana de Arte de 1922, ganhou status de modernidade. Pinga ou cachaça? Tanto faz, em termos. O dicionário do Aurélio oferece cerca de 140 sinônimos para a aguardente de cana. Além dos já aqui citados, denominam-na por aí de branquinha, quebra-goela, água que passarinho não bebe, uca - esta comum nas palavras cruzadas. Qualquer uma delas surge da fermentação do caldo da cana-de-açúcar por uma levedura (Saccharomyces cerevisiae). Existe, porém, uma diferença básica no modo de produzir, diferenciando o processo artesanal da fabricação industrial. Nas destilarias artesanais, o mosto, ou garapa da cana, é fermentado naturalmente e colocado em alambiques de cobre, onde o calor promove a evaporação, com a consequente condensação, da bebida destilada. Especialmente por causa dos trabalhos de certificação de origem mineira, nos últimos anos, cachaça passou a se denominar essa aguardente pura, oriunda de pequenos empreendimentos. Estima-se existirem 40 mil produtores de cachaça artesanal no Brasil. Eles utilizam técnicas variadas para criar a marca característica da sua cachaça. Alguns colocam quirera de milho no fermento, outros utilizam arroz. A variedade da cana plantada, bem como do solo e do clima regional também influenciam no terroir, tal qual ocorre nas vinícolas. Quem é da roça sabe que nas alambicadas caseiras os bons produtores desprezam a "cabeça" da aguardente, porque o início da destilação gera uma bebida com álcoois superiores, ficando muito forte. A "calda", parte final do processo, também não se presta, pois começa a ficar muito aguada. Aproveita-se, então, apenas o "meio", ou o "coração", que representa 80% do caldo fermentado. Nenhuma dessas manhas se utiliza nas grandes empresas. A pinga delas originada sai da destilação contínua em colunas de aço inox, semelhantes às usadas na fabricação do etanol combustível. Além do mais, a aguardente é estandardizada com açúcar e outros agentes químicos, visando a adquirir padrão comercial. As marcas famosas existentes - Tatuzinho, 51, Velho Barreiro, entre outras - abastecem 75% do volumoso mercado nacional, estimado em 1,3 bilhão de litros por ano. Como a exportação é pequena, pois o marketing externo do produto ainda é incipiente, o consumo per capita da aguardente de cana no Brasil aproxima-se de 7 litros por habitante/ano. Uma boa dose. Desde antigamente, e até hoje, a bebida alcoólica representa fonte de energia barata para a população mais pobre do País. Lembro-me, no final da década de 1970, dos estudos pioneiros coordenados pelo professor Dutra de Oliveira, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, que mostravam a ingestão de pinga como fonte importante de energia para os combalidos boias-frias daquela região. A realidade continua. Infelizmente, a pinga nacional ajudou a causar uma disfarçada doença que afeta 30 milhões de brasileiros: o alcoolismo. Essa desgraça representa, com certeza, a pior, pela extensão do problema, das nossas tragédias familiares. O crack, a maconha e as demais drogas ilícitas são terríveis. Mas o alcoolismo, legalizado, destrói as pessoas, causa violência contra mulheres e crianças no lar, mata no trânsito. Acaba com o cidadão. Apreciar uma boa cachaça, seja no carnaval, seja no churrasco com os amigos, não envergonha ninguém, nem mal faz à sociedade. Mas beber socialmente, como se diz, não pode servir para esconder o drama do alcoolismo, um mal que precisa ser reconhecido e combatido. Maldita pinga.

Xico Graziano, agrônomo, foi secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo: xicograziano@terra.com.br