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Câmaras Setoriais, uns contra todos

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Por Alexandre Barbosa
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Crises são perigosas porque ressuscitam ideias que vão de simples bobagens a totais injustiças. Surgiu a ideia de recriar as Câmaras Setoriais, que foram nada além de um aperfeiçoamento (para os privilegiados, é claro) do falido sistema de controle de preços que vigorou no Brasil nos anos 80 e 90 do século 20. Na época da inflação galopante, o salário que os pobres recebiam no fim do mês comprava menos da metade do feijão e do arroz que teria comprado 30 dias antes. A solussão brilhosa foi congelar os preços. Foi uma maravilha. Entramos num regime de inflação zero, socialista. Os preços não subiam, mas também não havia nada para comprar. Foi o racionamento mais bem administrado da história brasileira. Do congelamento foram ao controle de preços. Criaram o Conselho Interministerial de Preços (CIP), que foi um sussesso. Os produtores levavam as planilhas que queriam ao CIP, que aprovava o que era proposto, porque não conseguia fiscalizar toda a cadeia produtiva. Depois o governo vendia aos brasileiros a mentira: o preço determinado pelo CIP era o preço máximo. Era, da perspectiva de quem comprava. Mas da perspectiva dos produtores era o preço mais lucrativo. O governo abençoava a venda de gato por lebre. Todos os planos econômicos dessa época foram perfeitos, no dizer do professor Afonso Celso Pastore. Sua lógica interna era irretocável. Só havia um inconveniente: a premissa. Todos presumiam que no dia seguinte ao último dia do plano não haveria mais Brasil. Só que o Brasil não fazia o que o plano previa e continuava a existir. Claro o fracasso, o governo partia para outro igual: mais do mesmo. Quem não tinha conta remunerada em banco saía de cada plano um pouco mais pobre. O CIP era bom, mas ignorava um ator político que estava ganhando força naqueles tempos de democratização. Havia de inventar alguma coisa que incorporasse os sindicatos fortes, que faziam pressão política e estavam cada vez mais organizados, sobretudo por meio do PT. Eram os grandes sindicatos que, à custa de muito dinheiro grátis-grátis para eles, é claro - do imposto sindical -, pressionavam para defender os interesses de seus membros. Alguns esquerdistas mais liberais diziam que esses sindicatos, entre eles os dos metalúrgicos do ABC, num dos quais estava Lula, eram a "aristocracia operária". A "malta" operária não participava dessa festa. Com muita criatividade os çábios da economia inventaram as Câmaras Setoriais para solucionar os problemas de todos, pelo menos aparentemente. Reuniam-se empregadores, sindicatos fortes de empregados e o governo, sob a presidência do governo, e acertavam o preço mais justo para cada linha de produtos. Preço mais justo, é claro, para eles. Aos consumidores cabia apenas pagar o preço que lhes era vendido como a magnanimidade do governo, que não deixava os empresários gananciosos explorarem os consumidores. A classe média e os pobres acreditavam. Afinal, era uma política que tinha a bênção do governo democrático que dizia que estava aí para defender os interesses de todos. Presidentes de multinacionais execravam o sistema. Mas como eles eram pouco brilhantes! Um deles, um americano daqueles de cara bem vermelha, disse-me nessa época: "Como os meus colegas não percebem que este é o melhor sistema? Nunca tive tantos lucros como agora. As Câmaras Setoriais permitem que eu me reúna com meus concorrentes e com os representantes dos operários, com total apoio e a bênção do governo, numa repartição pública, para conspirar com eles e acertar qual o preço mais alto que poderemos cobrar dos consumidores. A esses cabe pagar o pato. Se eu fizesse isso nos EUA, iria para a cadeia por conspiração para fixar preços, sabotando a concorrência. Em economês, oligopólio. Felizmente esses tempos acabaram. Agora, com a crise, a burritzia nacional resolveu ressuscitar a ideia macabra: "Câmaras Setoriais podem se converter num importantíssimo foro de negociação entre governo, empresários e trabalhadores para administrar, setor a setor, os efeitos da crise e a manutenção, até onde possível, dos níveis de emprego e salário." Essa proposta não nos conta da missa a metade. O autor dessa pérola se esqueceu de nos dizer quem vai pagar a conta dessa festa. Todos os brasileiros que comprarão produtos vão financiar a farra dos convidados para as Câmaras Setoriais. É sempre bom lembrar que, se uma empresa não consegue sobreviver, com crise ou sem crise, a melhor solução para ela é fechar as portas e seus donos devem cuidar de tentar ganhar dinheiro em setores em que sejam mais competentes. Se não fecharem por vontade própria, a falência é um remédio milagroso. Nos EUA criou-se um movimento de piedade generalizado para salvar a indústria automobilística. No dia 24 de fevereiro todas as ações da General Motors (GM) valiam US$ 1,59 bilhão. Qualquer investidor que acreditasse na GM podia comprar todas as ações dela por essa pechincha. Por que ninguém fez isso? Porque todos sabiam que era um péssimo negócio. No mesmo dia, quem quisesse comprar todas as ações da Toyota teria de pagar US$ 99 bilhões, ou seja, 62 vezes mais. Não é coincidência: o governo americano vai pôr na GM seis vezes mais dinheiro do que o mercado está disposto a pagar por ela. A ressurreição das Câmaras Setoriais será apenas a rotinização de operações como a que o governo americano está fazendo para salvar a GM com o dinheiro dos americanos que pagam impostos. No caso das Câmaras Setoriais seremos chamados só para pagar a conta. Como gostava de dizer o Barão de Itararé, negociata é um ótimo negócio para o qual nós nunca somos convidados. Alexandre Barros, Ph.D. em Ciência Política pela University of Chicago, é pró-reitor do Centro Universitário Unieuro (Brasília) E-mail: alex@eaw.com.br