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Carisma e liderança

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Por Gilberto de Mello Kujawski
4 min de leitura

Está resolvido e não se discute que Lula tem carisma, esse dom excepcional, messiânico, para conduzir um povo ao seu grande destino. Afinal, um simples e obscuro operário metalúrgico, sem estudo e nenhum preparo intelectual, chegar aonde chegou, eleito duas vezes seguidas presidente da República, em votações maciças, só pode ser um predestinado. O líder carismático está acima do bem e do mal e de qualquer suspeita sobre sua honorabilidade; paira também acima dos partidos, do Congresso, das leis e da lógica usual. Não é um político comum, e sim um santo guerreiro ungido pela vontade popular para conduzir seu povo rumo à terra da promissão. Este é o perfil do líder carismático, forjado no imaginário popular, que sustenta Lula no poder e garante sua popularidade intocável, apesar dos escândalos diários, das suspeitas e denúncias que se avolumam contra seu governo. Caem ministros, auxiliares os mais próximos, e Lula continua firme, invulnerável. Pois Lula tem carisma e com o carisma não se discute. O que se discute é se o carisma é a mesma coisa que a liderança. Será que o carisma de Lula garante sua liderança, a capacidade de assumir o comando e de governar com pulso firme, eficácia e dinamismo? De nenhum jeito e maneira. Carisma e liderança não são sinônimos. O político pode ter carisma e não ter liderança, e vice-versa. Richard Nixon tinha grande liderança, mas não tinha carisma. John Kennedy tinha carisma e liderança. Ganhou a eleição. Entre nós, José Serra tem liderança, mas não tem carisma. O carisma é difícil de definir. Envolve a sedução pessoal, mas esta não basta. O carisma requer a crença maciça, a entrega incondicional da sociedade ou de parte da sociedade ao "messianismo" do chefe. FHC tem muita sedução pessoal, mas será que tem carisma? No campo militar, o duque de Caxias transparecia carisma e liderança. O marechal Floriano possuía liderança, mas pouco ou nenhum carisma. Tempos atrás era prefeito da capital paulista o engenheiro Francisco Prestes Maia. Homem competente como técnico, era respeitado por sua liderança na Prefeitura, mas despido de qualquer carisma e até de sedução pessoal. Lula irradia carisma, mas sua liderança é nula. Liderança é saber mandar, não pela força nem pela imposição unilateral da vontade, e sim com base em consenso. O líder tem pulso firme, sabe segurar o rojão, antecipa os acontecimentos, não vai a reboque deles. O líder enxerga. O primeiro traço distintivo da liderança é a capacidade de organização, principalmente nas situações que beiram o caos. Nesta aspecto, o governo Lula é catastrófico. Lula não sabe distinguir a ordem das prioridades. As Parcerias Público-Privadas, que poderiam socorrer a rede rodoviária e portuária, não saem do papel. Os petistas, como notou Carlos Alberto Sardenberg, acham que privatizar é "neoliberal". O apagão aéreo é só um aspecto do apagão geral do governo Lula e prenuncia o apagão energético que virá. O que ainda funciona nesta administração é a política econômica herdada de FHC, que deveria dobrar ou triplicar seus resultados, dada a bonança do mercado externo, mas patina no mesmo lugar desde a primeira posse do sindicalista. O líder não teme dar a cara para bater e não "submerge" nas horas difíceis, como fez Luiz Inácio quando do desastre do avião da TAM. Ao contrário, assume pessoalmente a frente dos acontecimentos e assim consolida seu prestígio. Carlos Heitor Cony, em artigo recente, lembra dois exemplos contrários ao que costuma fazer Lula. "JK tomou posse na Presidência e, dias depois, rompeu-se a barragem de Orós. Ele deslocou todo o governo para lá e só voltou ao Rio depois de resolver o problema pessoalmente. Outro exemplo: Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara, teve um rompimento na adutora do Guandu em construção. A cidade ficaria sem água. Lacerda pegou uma cadeira, sentou-se no local da obra e só saiu dali no dia seguinte, com o problema resolvido" (Folha de S.Paulo). Liderança não é falar grosso, como fez no dia da posse o novo ministro da Defesa - esse gaúcho de ego "argentino", desmedido e arrogante -, Nelson Jobim. O líder autêntico é sóbrio na fala e sua palavra já representa a ação em curso, e não bravata. Por sinal, o improviso do presidente Lula na posse do novo ministro da Defesa transformou a solenidade num momento convulsivamente hilariante, um "ato de profanação", segundo editorial publicado neste jornal em 27/7 (A3). Lula gracejava com piadas pesadas e de mau gosto, totalmente impróprias para a ocasião, proferia enormidades, saindo da compostura perante a platéia de ministros e políticos presentes: "Uns rindo, outros gargalhando." Que significa esse lamentável episódio? Somente uma coisa: as pessoas presentes estavam rindo de Lula. Na impotência de transformar o carisma em liderança efetiva, Lula resvalou para o histrionismo. Em suma, quando o carisma não vem acompanhado pela liderança, o político faz o papel do bufão. Dá aquele breve passo que separa o sublime do ridículo. A verdade é que o carisma, na origem, era coisa santa. Tinham carisma os reis, o papa, o Dalai-Lama. Depois, o carisma secularizou-se: o político, o poeta, o escritor, o cantor das multidões, o atleta, o jogador de futebol, o homem de negócios passaram a exibir carisma. Mais tarde foi pior: o carisma aviltou-se. Qualquer mequetrefe, qualquer escritor de medíocres best-sellers, qualquer chefe de escritório ou gerente de vendas passaram a atribuir-se "carisma". A diferença é que o carisma constitui um crédito concedido pelo povo ao seu representante, e a liderança só depende das qualidades intrínsecas ao líder. O carisma é feito pelo povo, a liderança é obra do próprio líder. Lula tem um carisma denso e irradiante, mas não soube honrá-lo com liderança à altura. Questão de competência. * Escritor e jornalista, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia E-mail: gmkuj@terra.com.br