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Carta de uma mulher honesta

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Por Redação
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Na Comissão Especial do Senado que julga o impeachment, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, na condição de advogado da presidente afastada, tem repelido com veemência, alegando a necessidade de respeitar o rigor processual, qualquer argumento da acusação relativo ao conjunto da obra de Dilma Rousseff que não se atenha às duas imputações de crime de responsabilidade que constam do processo: as “pedaladas” fiscais e os decretos que liberaram recursos sem autorização prévia do Congresso Nacional. Na quarta-feira passada, perante a mesma comissão e sem aparentar constrangimento, Cardozo foi obrigado a fazer exatamente o que não se cansou de condenar. Por delegação de Dilma, que optou pelo direito de se manter protegida atrás das colunas do Palácio da Alvorada, o advogado leu o “depoimento pessoal” de sua constituída, que, além de repetir os argumentos de defesa até agora expostos perante a comissão, dedica várias páginas à autoglorificação piegas e à exaltação de seu governo falido.

“Saibam todos que vocês estão julgando uma mulher honesta, uma servidora pública dedicada e uma lutadora de causas justas”, começa por afirmar a imodesta descrição que Dilma faz de si mesma. E prossegue na mesma linha: “O destino sempre me reservou grandes desafios. Alguns pareciam intransponíveis, mas eu consegui vencê-los. Já sofri a dor indizível da tortura, já passei pela dor aflitiva da doença, e hoje sofro a dor igualmente inominável da injustiça. O que mais dói neste momento é a injustiça. O que mais dói é perceber que estou sendo vítima de uma farsa jurídica e política”.

Sobre Dilma ser honesta, trata-se de afirmação prematura. As investigações sobre a compra da Refinaria de Pasadena, autorizada por ela quando presidia o Conselho de Administração da Petrobrás, continuam em andamento. Pode ser que ela não tenha obtido benefícios materiais nesse e em outros episódios sob investigação policial. Mas honestidade não é apenas não roubar. É também impedir que os outros roubem, quando se tem poder para isso. E é implausível a ideia de que Dilma não sabia de absolutamente nada sobre o mar de lama em que as administrações petistas navegaram. Omissão, nesse caso, também não é honestidade. Como não é tampouco honesto mentir em campanha eleitoral.

Quanto às dores “indizíveis” de que Dilma se orgulha de ter padecido “sem esmorecer”, muitas coisas podem ser ditas. Para os 11 milhões de brasileiros que confiaram em suas promessas de prosperidade e hoje amargam o desemprego e a impossibilidade de dar uma vida digna a suas famílias, é igualmente “indizível” a dor da frustração que o governo de Dilma lhes impôs.

Em outro trecho da carta, Dilma combina pieguismo de mau gosto com total alheamento da realidade: “Olho para trás e vejo tudo o que fizemos. Olho para a frente e vejo tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos”. Se ela de fato vê “tudo o que fizemos”, deveria morrer de vergonha. E se também enxerga o que “precisamos e podemos fazer”, está mais do que na hora de se poupar do constrangimento de um impeachment que sabe inevitável, entregar a carta de renúncia e retornar de vez a Porto Alegre.

Dilma não consegue realmente enxergar, em qualquer direção para a qual dirija o olhar, os erros que cometeu, nos quais por isso persevera ao demonstrar que cultiva a imagem de si própria como mártir da democracia. Em matéria de erros, o máximo a que ela se permite é o conforto das generalidades: “Na minha vida, os que me conhecem sabem que incorri provavelmente em erros e equívocos, de natureza pessoal e política. Errar, por óbvio, é uma decorrência inafastável da vida de qualquer ser humano”.

Felizmente, o impeachment de Dilma Vana Rousseff consolida-se a cada dia como uma “decorrência inafastável” dos muitos erros em que ela decerto, e não “provavelmente”, incorreu.