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China, o maior paradoxo de nosso tempo

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Por Luiz Felipe Lampreia
4 min de leitura

A vertigem que é a China - este, sim, é o espetáculo do crescimento, que nos tinha sido prometido aqui, no Brasil, numa famosa bravata de alguns anos atrás - coloca um difícil dilema para o mundo inteiro: ruim com ela, pior sem ela? Desde os tempos revolucionários do capitalismo no século 19 não se via desempenho tão espetacular. A China cresce, desde a chegada ao poder de Deng Xiaoping, em 1979, ao ritmo frenético mínimo de 9% por ano. Em diversos períodos, o ritmo chega a 11% e assusta os governantes pelo aquecimento excessivo, mas a economia chinesa não perde o fôlego, como acontece com as demais mortais. Investigar o porquê deste fenômeno é assunto complexo que deixo para outros mais credenciados que eu. Meu foco, neste breve artigo, é mais limitado: a explosão de riqueza gerada pela China e suas conseqüências para todos os países e todos os habitantes do planeta. Em outras palavras, como a China poderá dar uma contribuição, à altura de suas responsabilidades, para o esforço internacional de combate ao efeito estufa e suas graves conseqüências para a humanidade. De todas as partes nos chegam relatos dramáticos sobre as tensões que a explosão de riqueza coloca sobre a água, as minas, as terras agricultáveis, a zona litorânea desse país. Há filmes como Em Busca da Vida, do jovem diretor Jia Zhang-Ke, sobre os deslocamentos provocados pela construção da Hidrelétrica de Três Gargantas. Há cenas que vemos na mídia sobre menores seqüestrados para trabalhar em olarias, mineiros de carvão transformados em mortos-vivos e enchentes catastróficas. Estudo muito recente divulgado pelo Departamento Nacional de Administração da Proteção Ambiental da China concluiu que seis em cada dez cidades chinesas sofrem pesadamente com a poluição do ar ou, em outros termos, a qualidade do ar é boa em apenas 37,6% das cidades chinesas. Há, enfim, múltiplas evidências de que o preço do espetáculo do crescimento se vai tornando muito elevado. Mas, como disse recentemente um arguto observador brasileiro, do seu posto em Pequim, "a liderança chinesa parece ter-se convencido de que a deterioração dos indicadores sociais e do meio ambiente constituem gargalos à própria continuidade do crescimento econômico". Essa nova ênfase tem sido apresentada pela liderança chinesa como a construção de uma "sociedade harmoniosa". Fato novo também é o surgimento de uma classe média, antes dócil seguidora do Partido Comunista, mas que hoje não hesita em expressar suas inquietudes, críticas e reivindicações, mesmo que seja apenas pela internet ou em círculos restritos. Os dirigentes da China - que estão entre os mais esclarecidos e inteligentes do mundo globalizado - vão se dando conta de que não é mais possível ignorar as pressões de todos os tipos para que seu país contribua mais ativamente para sustar a deterioração do meio ambiente e para o combate pela redução das emissões de CO2. Ora, a China já é, juntamente com os EUA, a maior responsável pela emissão dos gases do efeito estufa e deve ocupar o primeiro lugar indiscutível em breve. Seu crescente uso de carvão sem maiores restrições ambientais - e, portanto, sem controle sobre a poluição - projeta hoje uma forte sombra na luta contra o aquecimento global e impacta todos os países do mundo, e não apenas os da Ásia. Vai começar em breve uma das negociações internacionais mais cruciais de nosso tempo. Em dezembro em Bali, na Indonésia, haverá a primeira rodada de um processo que deve levar, em alguns anos, a um tratado internacional para o combate global contra as perigosas mudanças climáticas, que a ciência já definiu, com boa margem de segurança, como a maior ameaça atual à vida em nosso planeta. Sem a participação de Pequim não há como pensar no equacionamento destes desafios globais para a sustentabilidade do desenvolvimento econômico. Por enquanto a China se esconde atrás da cômoda posição de acusar os países que a precederam no processo intenso de industrialização por todos os males que hoje constatamos no meio ambiente planetário. Afirmam também os porta-vozes chineses que o crescimento econômico é seu primeiro objetivo estratégico, ainda que resulte em sérias conseqüências para seus vizinhos e para todos os países do mundo. Há, portanto, um risco real de que o principal responsável atual pelas emissões de gases poluentes se exclua do esforço internacional de redução da ameaça e contenção de danos. É, sem dúvida, muito forte o argumento da necessidade imperativa de superar, pelo crescimento econômico, o imenso desequilíbrio social que perpassa a bilionária sociedade chinesa. Pode ocorrer este perigoso cenário? Sem dúvida. A China não pode ser constrangida a tomar posições que sejam internacionalmente corretas, mas não se coadunem com sua própria visão de seus interesses básicos. É o caso da sua política cambial, que leva a uma moeda subvalorizada e, por isso, a clamores de práticas comerciais falseadas. Até aqui as autoridades de Pequim fazem pequenos gestos de ajuste, mas se recusam a revalorizar o yuan. Muito pragmático, o governo chinês só fará o que julgar mais oportuno em suas considerações internas e só admitirá seguir o fluxo internacional se achar que é de seu interesse, como foi o caso da adesão à OMC. Neste caso, o país teve de adotar difíceis compromissos de abertura e de modificação de regras econômicas, mas considerou que os benefícios superavam o preço a pagar e subscreveu os acordos internacionais de comércio. No caso do acordo pós-Kyoto, será fundamental que adiram os demais grandes poluidores - os países da União Européia, a Índia, o Brasil e, sobretudo, em primeiríssimo lugar, os EUA. A margem de consenso internacional precisará ser muito elevada para que os recalcitrantes, a começar pelos campeões mundiais da poluição - China e EUA -, se vejam obrigados a contribuir de modo proativo para o sucesso das negociações, com a aprovação de um tratado internacional realmente significativo.