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Choque na gestão pública

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Por Gaudêncio Torquato
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Zaratustra, o protagonista que Nietzsche criou para dar unidade moral ao cosmo, vivia angustiado à procura de novos caminhos, novas falas, novos desafios. Em seus solilóquios, recitava: "Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas." Decifrador de enigmas, arrumou a receita para as grandes aflições: "Juntar e compor em unidade o que é fragmento, redimir os passados e transformar o que foi naquilo que poderá vir a ser." E assim, escrevendo uma "nova tábua", correu atrás dos irmãos para ajudá-lo a levá-la "ao vale e ao coração dos homens". A imagem do controvertido filósofo alemão, na fábula em que apresenta o famoso conceito de eterno retorno, cai como uma luva no atual ciclo de nossa democracia representativa, hoje assolada por gigantesca avalanche de críticas e denúncias. A analogia aponta para a inexorável alternativa que resta à base parlamentar: compor novos arranjos para a orquestra institucional, construir uma ponte para o futuro, reencontrar-se com as massas e resgatar a esperança perdida. Essas são as cores da bandeira a ser desfraldada neste instante em que a descrença na instituição política bate no fundo do poço. A tarefa, convenhamos, requer arrojo para enfrentar dissabores, a partir das pressões endógenas ou, como reza o vocabulário parlamentar, das vozes contrárias do chamado baixo clero. Só alcançará resultados caso todos os atores do palco institucional se comprometam a extirpar os excessos. Esse é o busílis. Nem todos admitem eliminar as gorduras. Colar os cacos de um vaso da prateleira até pode repor a estética do conjunto, mas não imprimirá grandes mudanças à feição geral que está colada na mente de parcela ponderável da sociedade. Significa dizer que o rigor na concessão e distribuição de passagens, o controle de verbas indenizatórias e maior transparência nos atos parlamentares constituem decisões meritórias, mas não evitarão que, mais adiante, novas ondas avassaladoras inflijam mais perdas aos congressistas. Urge mapear os pontos de estrangulamento interno, realizar varreduras constantes nos espaços, desobstruir a agenda legislativa e pôr o Parlamento no centro dos grandes debates. E mais: os Poderes Executivo e Judiciário, de todas as instâncias, também devem pegar o bonde reformista. Sob pena de continuarem na lupa da descrença social. Como se sabe, a praga dos privilégios se espalha por todos os espaços da res publica. O quesito viagens é uma partícula menor no feixe das distorções. As estruturas dos Poderes geram um apreciável PIB comandado por compadrio político e que resvala pelo ralo do custo Brasil. Numerosos contingentes se aboletam no cobertor público, a partir dos pequenos municípios. As políticas, inclusive as salariais, são disformes. O custo da ineficiência invade as malhas dos Executivos municipais e estaduais, das Câmaras de vereadores e das Assembleias Legislativas. Legiões de acomodados locupletam espaços. A gestão de resultados é um resquício quase imperceptível nas planilhas. O Estado é visto pela população como um ente paquidérmico e caro. Junte-se à pasmaceira o colchão social do distributivismo para se flagrar a cara de um país que não entrou no século 21. A imagem da administração se parece com uma árvore que não gera frutos. E, quando gera, os frutos não têm sabor. Portanto, o momento vivido pelo Parlamento é propício para uma chamada geral à responsabilidade. As estruturas carecem de uma virada de mesa. O cardápio está pronto: viagens de servidores, promoção e participação de empresas estatais em eventos, gastos com campanhas publicitárias, cartões corporativos, superlotação dos espaços, nepotismo, enfim, todo e qualquer centavo gasto nas grandes avenidas e nas pequenas veredas do Estado deve ser objeto de varredura. E atenção para a palavra de ordem do momento: transparência total. De que adianta tampar os buracos nas cúpulas côncava e convexa do Congresso Nacional e deixar abertas as crateras em outros territórios? Quem não desconfia que as rachaduras congressuais são fichinha ante as falcatruas das licitações de cartas marcadas? Basta botar a lupa na engenharia de artifícios para malandros entrarem, sorrateiramente, nos cofres do Tesouro. Nos últimos tempos, observa-se estranho movimento. Empresas são transferidas para "laranjas" (pessoas sem patrimônio), apenas para acumular passivos. Tais empresas de fachada ganham contratos públicos, a preços muito baixos e imbatíveis pela concorrência séria. Driblando direitos trabalhistas e tributos, passam a enfrentar, mais adiante, processos na Justiça. E aí vem o golpe: inviáveis, entram em falência. Enquanto os verdadeiros donos se refestelam, a conta final vai parar no cofre dos clientes, na maioria, órgãos públicos. Vulcões despejam rios de lava nas encostas da administração pública. Para complicar, sismos intermitentes abalam as paredes dos edifícios institucionais. Veja-se o mais recente, que fez tremer a imponente catedral da mais alta Corte Judiciária do País. Nunca se viu um chumbo de calibre tão grosso como esse trocado entre o presidente do STF, Gilmar Mendes, e o ministro Joaquim Barbosa, daquela Corte. Dizer que o presidente do Supremo tem um magote de capangas em Mato Grosso é algo inimaginável. Parafraseando Luiz Inácio, "nunca antes na história desse país" se ouviu uma linguagem tão desaforada expressa por um ministro do Supremo. Absurdos como esse quebram os freios e contrapesos entre os Três Poderes, deixando em frangalhos a arquitetura traçada pelo barão de Montesquieu. É falácia dizer que as instituições estão sólidas. O que fazer para resgatar a crença social? Ir fundo no campo das reformas. Ter coragem, ousadia. A reforma política se torna inadiável. A gestão pública carece de cirurgia profunda. Sob pena de a esfera privada (oikos, em grego) continuar a invadir a esfera pública (koinon). E assim deixar que a fome particular continue a devorar o cardápio que pertence ao povo. Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político e de comunicação