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Opinião|Como se reconhece um negro?

Para consolo de todos e apesar dos pesares, temos o inegável acerto das cotas universitárias

Atualização:

Considerada antigamente como cretina ou mal intencionada, a pergunta do título ganhou uma coloração nova com o sistema de cotas raciais afirmativas. Vigente hoje na imensa maioria das universidades brasileiras, o sistema, contrariando vaticínios pessimistas, tem dado resultados excelentes, com alunos cotistas negros, pardos ou indígenas apresentando notas comparáveis às dos não cotistas e taxas de evasão menores.

Como tudo o que toca na explosiva questão das raças, entretanto, o estabelecimento das cotas despertou controvérsias. Mais fácil, argumentam alguns, seria limitar as cotas aos candidatos que estudaram em escolas públicas e de renda familiar inferior a determinado patamar. Isso acabaria beneficiando as mesmas pessoas e evitando critérios raciais que, além de constitucionalidade discutível, são dificilmente aplicáveis no Brasil, onde a mistura de raças torna qualquer comprovação duvidosa.

Já se tentou exigir uma fotografia no momento da inscrição, manobra cujas limitações se tornaram evidentes desde 2007, quando dois irmãos se candidataram às vagas de cotistas na Universidade de Brasília. Um foi aceito e o outro, não, muito embora fossem gêmeos idênticos.

A solução geralmente adotada é considerar como negro, pardo ou indígena quem assim se declara. Mas, se qualquer um pode se declarar como bem entender, abrem-se de par em par as portas para fraudes. Para dirimir as dúvidas, uma universidade do Rio Grande do Sul criou uma espécie de comissão que julgava os candidatos pelo tom da pele, formato dos lábios e outros traços ditos fenótipos.

Logo batizado de tribunal racial, o sistema foi abandonado por despertar lembranças que o mundo civilizado gostaria de ver esquecidas. Recorde-se que o sistema de cotas nas universidades não é uma invenção recente. Sua função inicial, no entanto, não era a de beneficiar, e sim a de prejudicar determinadas minorias. Na sua origem europeia, os principais visados eram os judeus, cuja presença nas faculdades de Medicina, Engenharia, etc. era severamente limitada.

Para verificar quem era ou não judeu, as soluções encontradas foram se multiplicando até que a pergunta “como se reconhece um judeu?” atingisse um ápice de abjeção durante a Alemanha nazista e nos países ocupados pelos exércitos de Hitler.

Pode-se argumentar que os crimes de um sistema de seleção feito para prejudicar nada têm que ver com o atual sistema de cotas imaginado para beneficiar. Para muitos, porém, qualquer aproximação das palavras política e raça faz soar uma estridente campainha de alarme.

De qualquer maneira, resta a questão de identificar os eventuais beneficiados pelas cotas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as opções de “cor ou raça” são as seguintes: “branca, preta, amarela (pessoa de origem japonesa, chinesa, coreana, etc.), parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça) ou indígena (pessoa indígena ou índia)”.

O inconveniente dessa classificação é que ela encerra as pessoas em gaiolas estatísticas das quais muitas preferiam escapar. Um artigo assinado por Simon Schwartzman em novembro de 1999, Fora de Foco: diversidade e identidades étnicas no Brasil (disponível na internet), mostra com que palavras os próprios pretos e mestiços brasileiros se classificam e se reconhecem.

Os pretos, além de se declararem como pretos, preferivelmente a negros, identificam-se em larga escala como morenos. Com eventuais distinções entre claros e escuros, os que se definem como morenos são aqueles que o IBGE considera pardos.

A diferença é que ser moreno parece ser uma coisa simpática, enquanto o emprego da palavra pardo desperta grande resistência, o que não é de espantar. Com tantas canções populares homenageando o encanto das morenas, nunca se ouviu alguém contar aos amigos que conhecera uma parda maravilhosa.

Diante desses dados, estudou-se a possibilidade de cancelar perguntas sobre cor ou raça e indagar sobre a origem familiar dos pesquisados. Concluiu-se, no entanto, que isso não levaria a nada. Na época da pesquisa, com exceção daqueles advindos da imigração recente, todos declaravam que a origem familiar era “brasileira”.

Isso não impediu a grande onda mundial tendente a copiar o modelo esquizofrênico norte-americano, em que basta ter uma gota de sangue negro para ser considerado negro, mas um litro de sangue branco não autoriza ninguém a se considerar branco.

Assim, o ex-presidente Barack Obama, filho de mãe branca e pai negro, é apresentado como negro. Assim é nos EUA e, por força do imperialismo cultural americano, também no resto do mundo. Na imprensa mundial ninguém se refere a ele como presidente mulato, como se a palavra mulato tivesse virado uma maldição ou uma ofensa.

Por motivos diversos, mas com o mesmo resultado, a ideia de assimilar todos os mestiços aos negros é defendida por correntes de esquerda brasileiras inspiradas por sociólogos como Florestan Fernandes. Afirma-se que mestiços não devem desejar aproximação com os brancos, e sim com os negros, cujo potencial revolucionário deveria ser despertado e mobilizado.

Se isso viesse a ser efetivamente adotado na vida real, os principais prejudicados seriam os mulatos, vitimados por um absurdo rebaixamento cultural. Mas, na areia movediça das teorias raciais, pouco pode ser afirmado com certeza.

Para consolo de todos e apesar dos pesares acima citados, temos o inegável acerto das cotas universitárias. Depois de demorada resistência, a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ambas no ápice da educação brasileira, só agora em 2017 aderiram ao sistema. Já vão tarde. Podiam ter seguido o exemplo da Universidade Harvard, a mais antiga dos EUA, que após décadas do sistema de cotas viu pela primeira vez neste ano o número de calouros negros, latino-americanos e asiáticos suplantar o de norte-americanos brancos. É uma tendência sem volta.

*Jornalista e escritor

Opinião por Pedro Cavalcanti