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Opinião|Consolidação constitucional

Neste momento de crise econômica e política, precisamos cortar os excessos da Carta de 88

Atualização:

Como já havia escrito em artigo neste mesmo jornal em 2010, o Brasil já é um dos campeões em cirurgias plásticas do mundo. Dentre as favoritas, agora com a adesão de famosos artistas, está a lipoaspiração. Trata-se de um procedimento cirúrgico para a retirada de gorduras localizadas e, normalmente, desnecessárias. Pois bem, neste momento de crise econômica e política, isso é o que, metaforicamente, precisamos fazer com a nossa Constituição federal de 1988.

A despeito do alerta em relação a esse tema feito em 2009, nada fizemos. Surfamos uma onda de valorização das commodities, aumentamos ainda mais o tamanho no Estado e de sua interferência na economia, e quando a realidade bateu à nossa porta percebemos que os desafios permanecem e que o tema daquele artigo merece ser revisitado urgentemente. Por quê?

Porque qualquer tentativa de reforma legislativa fundamental para a recuperação econômica esbarrará em interpretações – melhores e piores, mas no mais das vezes enviesadas politicamente – sobre a sua constitucionalidade, com o provável objetivo (ou resultado inesperado) de barrar essa mesma reforma.

Pegue-se o exemplo da urgente e necessária reforma trabalhista. Alguém acredita que o Poder Judiciário trabalhista não usará o vago texto constitucional para frear reformas? E, quem sabe, no âmbito previdenciário, seria imaginável algo diferente da Justiça Federal? É até ingênuo acreditar que o Judiciário não construa, a partir de sua interpretação, o Direito.

Vale dizer, a vagueza semântica do texto constitucional, somada a uma dogmática jurídica esquerdizante nas Faculdades de Direito e a um voluntarismo político dos próprios juízes, prende-nos ao passado. É preciso dar um sinal aos agentes jurídicos de que o País mudou e se modernizou.

Com efeito, não se percebeu ainda que a nossa Constituição é datada; ela tem, portanto, prazo de validade. Como a Constituição brasileira de 1988, sob certo aspecto, foram redigidas a Constituição revolucionária mexicana, a Constituição alemã de Weimar, bem como a Constituição dirigente portuguesa. Nenhuma destas durou no tempo, por sua falta de realismo e por sua tentativa de “engenharia social”.

Uma Constituição tão longa e detalhada é sinal e atestado de sua própria fraqueza. Quem quer tudo regular acaba por pouco fazê-lo. No campo constitucional, diz a experiência que “menos é mais”, como é o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos.

Com tantos artigos e tanta amplitude, associados a uma redação pouco precisa de seu texto, a verdade é que não há lei hoje no Brasil que não possa ter a sua constitucionalidade discutida por qualquer juiz (“controle de constitucionalidade difuso”, no jargão jurídico).

Dessa maneira, não se transforma uma sociedade por meio de uma nova ordem constitucional, como queria o constituinte de 1988. Por meio de uma Constituição se reconhecem e se identificam regras mínimas de funcionamento do Estado nas suas relações com as pessoas.

Agora, a lipoaspiração deve ser feita não apenas porque nos prende ao passado, mas, sobretudo, porque há excessos mesmo na Constituição. Esses excessos foram fruto, de um lado, de uma geração alijada do processo democrático durante a ditadura militar (intelectuais de esquerda, sindicalistas, movimentos sociais de acesso à terra, para nomear alguns) e que depositou na Carta de 1988 suas esperanças de tudo resolver com o restabelecimento da democracia (justiça social, salário digno, lazer, educação, saúde); de outro, ela foi fruto de uma coleção de interesses, no mais das vezes, conflitantes entre si.

Esses interesses foram retalhados nos diversos capítulos da Constituição. Profissionais da área jurídica lutaram por garantias de suas categorias, sindicatos trabalharam em favor dos direitos sindicais e trabalhistas, profissionais da saúde esforçaram-se por um direito à saúde, e assim por diante.

Com efeito, para a Constituição de 1988 confluíram grupos de interesses diversos – basta observar o número de cartas enviadas aos constituintes provenientes de sindicatos, ambientalistas, movimentos sociais, empresários –, buscando a “justiça social” (como se houvesse espaço de justiça que não no âmbito da sociedade), a “função social da propriedade”, a “livre-iniciativa” e diversas pretensões em larga medida inconciliáveis...

Os constituintes, por esses motivos, e justamente pelo fato de terem sido deputados eleitos e com longa trajetória política pela frente, tornaram-se facilmente “apropriados” por aqueles grupos de interesses diversos, pois tinham eles também o interesse de seguir na vida pública posteriormente à Constituição. Não que isso seja feio ou errado, fomos apenas vítimas das circunstâncias políticas daquele momento.

Difícil, no entanto, é encontrar alguém que, naquele contexto, tenha lutado pelo interesse de todos, porque o deputado de “todos” não é reeleito.

Passado esse contexto político com a consolidação da democracia, é chegado o momento de uma consolidação constitucional. O estabelecimento de regras para o futuro requer, como propôs Rawls, por uma questão de justiça, que os legisladores sejam desinteressados, pois somente assim conseguirão fazer regras que valham contra eles mesmos, evitando o conflito de interesses (tão nocivo ao bem comum).

Passaríamos por um processo de desestatização, ou de “desconstitucionalização”, ou mesmo de “despolitização”, ou seja, de perda de gordura constitucional. Esse será o momento de ruptura com a servidão e com o paternalismo estatal e com os grupos de interesse que povoam o Legislativo e o Executivo.

Last, but not least, a “lipoaspiração” contribuiria ainda para diminuição do número de processos, dado que os tribunais estão abarrotados.

*Advogado