Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Contencioso do algodão

Exclusivo para assinantes
Por Pedro de Camargo Neto
3 min de leitura

Nas duas últimas décadas transformações estruturais e macroeconômicas tornaram o Brasil um grande produtor agrícola e líder exportador de diversos produtos. No debate político do comércio agrícola, porém, o Brasil permanecia em posição discreta, muitas vezes liderada pela Argentina e pela Austrália, países menores. No bojo da estratégia para o Brasil assumir posição de liderança foram desenvolvidos os contenciosos do algodão com os EUA, do açúcar com a União Europeia e um contencioso de soja que, com uma alta de preços e consequente redução de subsídios, não se materializou. A ousadia da proposta em 2001 criou instigante debate interno no governo, que atrasou o início dos contenciosos. Em reunião da Câmara de Comércio Exterior (Camex), em setembro de 2002, os dois contenciosos foram aprovados e, no mês seguinte, a consulta, passo inicial do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), foi formalizada em Genebra. A administração Lula deu rápida sequência ao contencioso do algodão e titubeou no do açúcar, como resultado de pressões de antigas colônias europeias na África, no Caribe e no Pacífico. Felizmente, confirmou alguns meses depois sua continuidade. A gestão jurídica dos dois contenciosos foi competente e permaneceu sob a orientação dos advogados que haviam realizado os estudos visando às consultas. O Brasil venceu os dois contenciosos de maneira ampla. União Europeia e EUA recorreram da decisão do painel de arbitragem, mas continuamos vencendo. A União Europeia reagiu de maneira distinta dos EUA. Utilizou o contencioso como força política para a reforma do esclerosado regime açucareiro europeu. Deixou de exportar açúcar, o que somente era possível com elevados subsídios. Atualmente o Brasil não mais sofre a concorrência predatória dos europeus, que até recentemente eram os maiores exportadores mundiais do produto. Mais sucesso do que isso é impossível. Já os EUA negaram, e continuam negando, a forte e clara decisão dos árbitros da OMC. O Brasil, infelizmente, facilitou esse grave equívoco da administração George W. Bush. O governo Lula aceitou o argumento de que a Rodada Doha iria reformar toda a política agrícola e que, portanto, a solução do contencioso do algodão sairia como resultado da negociação. Realizaram acordos oferecendo o prazo que Washington pedia. Felizmente mantiveram o contencioso juridicamente vivo. Ao aceitar o argumento norte-americano e deixar o contencioso, com sua grande vitória, escondido em Genebra, o governo Lula desperdiçou tal capital político. Ao não liderar a reforma do comércio agrícola do algodão, produto símbolo na reunião ministerial da OMC em Cancún, abandonando à própria sorte os países africanos produtores de algodão, perdeu a oportunidade de fortalecer o Brasil como líder político do comércio agrícola. A iniciativa dos contenciosos fortaleceu a credibilidade do Brasil e permitiu a formação do G-20 na reunião de Cancún. O Brasil se tornou líder mundial e passou a participar de reuniões do G-4, grupo que inclui também EUA, União Europeia e Índia. Poucos temas permitem esse tipo de liderança - além do agrícola, talvez o aeronáutico. A administração Lula parece ter confundido o destaque alcançado, querendo transplantar essa liderança para quase tudo. Nada contra tentar essa ampliação, mas o posicionamento firme teria de ser mantido na questão original, o contencioso agrícola. Era essencial utilizar permanentemente, em todas as reuniões e locais, os argumentos vitoriosos do painel de arbitragem. Destaco que o contencioso do algodão encontrou enorme apoio dentro dos EUA. O confronto nunca foi com os EUA, mas com o lobby do algodão, que precisava mesmo ser abertamente confrontado. Perdemos essa oportunidade, um grave erro. O contencioso ajudaria a resolver Doha, não o inverso, como parecem ter acreditado nossos negociadores. Pelas regras da OMC, como os EUA não cumpriram o determinado pela arbitragem, o Brasil ganha como contrapartida o direito de retaliar. Agora, em Genebra, devem definir o montante da retaliação a ser autorizada, bem como a maneira como poderá ser aplicada. O Brasil pleiteia retaliar não dentro do acordo de bens da OMC, mas no acordo de propriedade intelectual. Retaliar em bens seria obter autorização para cobrar impostos de importação superiores aos tetos determinados pela OMC, de maneira a prejudicar exportações norte-americanas, mas também prejudicando os importadores brasileiros desses produtos. Retaliar de maneira cruzada, como é chamada a retaliação em outro acordo que não o de bens, será obter autorização para descumprir obrigações do acordo de propriedade intelectual, deixando de pagar royalties. Neste momento, os produtores brasileiros de algodão, frustrados, com razão, com a falta de resultado concreto do contencioso e não acreditando na vontade política do governo de realmente retaliar ao ponto de provocar mudanças na política agrícola, manifestam apoio à proposta da indústria têxtil de um acordo modesto e, talvez, inconsistente de maior acesso ao mercado norte-americano de produtos têxteis. Os próximos passos vão indicar se o Brasil pode liderar politicamente o futuro do comércio agrícola. Todos, não só os países africanos, estarão observando. A administração Obama dá sinais de desejo de reduzir subsídios. Cumpriria ao Brasil ajudá-lo, utilizando de maneira competente o contencioso. Vamos aguardar. Pedro de Camargo Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs), foi secretário de Produção e Comercialização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de 2001 a 2002