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Opinião|'Contrabandos' no ajuste fiscal

Atualização:

As medidas de ajuste fiscal propostas pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, objetivam a redução da dívida pública e o pagamento dos respectivos juros, de modo a ensejar os necessários investimentos nos programas de desenvolvimento econômico e redução da pobreza. O ideal seria que a presidente da República, até mesmo para reconquistar o apoio popular, pudesse anunciar algo de forte significação para o ajuste fiscal e grande impacto político, como, por exemplo, a extinção de 15 ministérios! Melhor ainda se também fosse anunciada a extinção de 10% dos cargos em comissão dos ministérios, agências e demais autarquias e a extinção de algumas das 128 autarquias, 34 fundações e 140 empresas estatais. Por outro lado, é de lamentar a inclusão, entre tais medidas, de propostas antigas, que se encontravam em alguma gaveta de Brasília à espera de oportunidade. As propostas nocivas sempre aparecem na elaboração dos planos econômicos. São os chamados "contrabandos". É o caso, por exemplo, das medidas restritivas de direitos previdenciários, afetando um dos mais amplos sistemas de previdência do mundo. No governo Lula, tais medidas já haviam sido propostas, mas não vingaram. Essas medidas desgastaram o governo, sem que representem - e isso é o mais grave - qualquer ganho para o Tesouro Nacional. Com efeito, a Previdência Social é custeada pelas contribuições dos empregadores e dos trabalhadores. No setor urbano, a Previdência é superavitária, mas altamente deficitária no setor rural, porque a Constituição de 1988 incluiu no sistema 6 milhões de trabalhadores que nunca haviam pago nenhuma contribuição. Mesmo esse déficit, todavia, não é custeado pelo Tesouro, mas pela receita vinculada da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), que, pela Constituição (artigo 195, I), se destina, exclusivamente, a financiar a Seguridade Social (Previdência, Assistência Social e Saúde). O ministro da Previdência, Carlos Gabas, em entrevista concedida ao Estado (23/2), esclareceu que "tivemos, no ano passado, cerca de R$35 bilhões de superávit na previdência urbana" e "uma arrecadação de R$ 5 bilhões com a rural e gastos de R$ 80 milhões", ou seja, um déficit de R$ 75 bilhões, em parte coberto com o superávit das contribuições dos trabalhadores e empregadores urbanos, o que é socialmente injusto. Gabas destacou, sutilmente, que "a arrecadação da Cofins e da CSLL é muito superior a essa diferença, mas isso não fica claro". O ministro concluiu, enfatizando: "Não podemos pensar em 'vamos cobrir o rombo'. Não tem rombo, entende?". Assim, é necessário ficar claro que o Tesouro Nacional retém, indevidamente, a receita da Cofins e da CSLL, transferindo-a, aos poucos, aos órgãos da Previdência, Assistência Social e Saúde. Isso ocorre pelo descumprimento acintoso da Constituição (artigo 250), que prescreve a criação de um fundo para recebimento das receitas previdenciárias e outros ativos e aplicação financeira de suas disponibilidades. Para aumentar, na conta do Tesouro, o saldo da receita da Cofins e da CSLL foram feitas, lamentavelmente, restrições às pensionistas em geral, inclusive punindo as viúvas jovens, muito embora muitos segurados contribuam por 50, 60 anos sem deixar viúva nem descendentes. Ora, a Previdência é um sistema de seguro social. Por força da proteção constitucional aos direitos adquiridos, a citada restrição só seria aplicável a dependentes de contribuintes que ingressarem na Previdência após a entrada em vigor da lei. Por conseguinte, o melhor, para o governo, seria revogar, em parte, a Medida Provisória 664/14. O ajuste fiscal deve ser perseguido com maiores cortes na despesa e a criação de novas fontes de receitas. Além do "corte" de R$ 65 bilhões, o governo, por intermédio do Ministério da Planejamento, pode passar uma "peneira" no Orçamento de 2015 e propor o "corte" definitivo das numerosas dotações alocadas a projetos supérfluos ou adiáveis. Do lado da receita, pode ser aumentada a incidência do IOF e do IPI, este sobre produtos supérfluos ou de alto valor. E sempre cabem ajustes no Imposto de Renda. Outras fontes para o ajuste fiscal residem na privatização de aeroportos e rodovias - medida já parcialmente adotada - e de empresas como o IRB e as dezenas de subsidiárias da Petrobrás e do Banco do Brasil. Lamentavelmente, parece abandonada a ideia de abertura do capital da Caixa Econômica Federal, cujas demonstrações financeiras, recentemente publicadas, indicam um patrimônio líquido de R$ 62 bilhões e lucro líquido de R$ 7,1 bilhões (ainda não transferido ao Tesouro). A mesma providência poderia ser adotada em relação aos Correios (ECT). Surpreendentemente e por falta de ponderação política adequada, novos "contrabandos" foram anunciados, ou seja, as obsoletas propostas de criação do imposto sobre heranças e doações e do imposto sobre grandes fortunas. O primeiro já é cobrado no Brasil, sob a denominação de Imposto Estadual sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer bens ou Direitos. A respeito do imposto sobre grandes fortunas, há farta literatura e a experiência negativa dos dez países europeus que chegaram a adotá-lo: incidência sobre a classe média, eis que os ricos têm vários meios de fugir ao imposto, como a transferência de patrimônios para outros países, a aplicação das fortunas em bens móveis de difícil controle pelo Fisco, como ouro, pedras preciosas, moeda estrangeira, obras de arte, etc. Isso afora a gigantesca burocracia gerada, as divergências quanto à avaliação dos patrimônios e as alegações de bitributação (os patrimônios seriam constituídos pelas rendas já tributadas). Em suma, o ajuste fiscal tem de ser executado com fortes medidas de redução da despesa, aumento da receita e venda de ativos, mas sem "contrabandos". * ADVOGADO, FOI PROCURADOR-GERAL DA FAZENDA NACIONAL

Opinião por Cid Heraclito de Queiroz