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Controlar trilhões resolverá tudo?

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Por Washington Novaes
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Um leitor habitual dos textos aqui produzidos pelo autor destas linhas considera-os "elucidativos", embora às vezes "amargos" - o que julga compreensível, pela gravidade das questões expostas. É possível que seja assim - ainda que não se tenha a intenção -, diante do quadro inquietante das mudanças climáticas e do consumo de recursos naturais além da capacidade de reposição da nossa biosfera. Uma dessas questões ainda há poucos dias (AFP, 24/6) levou o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan a reiterar no Fórum Humanitário Global que os políticos das nações ricas "enfrentarão a indignação e a ira da opinião pública se falharem no enfrentamento do desafio do clima". O atual secretário-geral, Ban Ki-moon, na mesma semana, advertiu que o número de "refugiados ambientais" poderá chegar a 200 milhões em 2050. Eles já são 24 milhões. E uma das causas é a progressiva desertificação de terras (consumo excessivo de recursos naturais é um dos caminhos). Em 40 anos, um terço das terras de cultivo será abandonado. Mesmo no Brasil já há 180 mil km2 em processo de desertificação, principalmente no semiárido nordestino, onde vivem 18 milhões de pessoas. No mundo, são 250 milhões de pessoas afetadas pela desertificação, diz a respectiva convenção mundial (Rádio ONU, 22/6). Segundo a FAO, a Organização para a Alimentação e a Agricultura, da ONU, "com 1% dos recursos dados aos bancos na atual crise (mais de US$ 4 trilhões) se resolveria o problema da fome no planeta" (Agência Estado, 20/6), que agora já atinge mais de 1 bilhão de pessoas, embora haja alimentos suficientes no mundo. Mas não é disso que tratam as atuais tentativas de encaminhar soluções para a crise financeira. Há exceções, claro, como a da comissão nomeada pelo presidente Sarkozy, da França, e liderada pelos Prêmios Nobel Amartya Sen e Joseph Stiglitz, que já produziu um relatório preliminar em que tenta definir novos caminhos, superando a insuficiência dos atuais critérios econômico-financeiros para avaliar e referendar soluções. Nestes, de modo geral, as discussões centram-se quase exclusivamente no ângulo financeiro, ainda mais lembrando que o mercado de "derivativos" no mundo movimenta US$ 592 trilhões (Estado, 23/6) - ou seja, mais de 40 vezes o produto bruto anual dos EUA, ou quase 400 vezes o PIB brasileiro. Só em bancos suíços estão depositados cerca de US$ 7 trilhões. Um dos exemplos mais recentes das limitações (Estado, 23/6) é a exposição feita no Senado norte-americano pelo presidente da Comissão de Negociação de Contratos Futuros de Commodities, argumentando com a necessidade de que esse mercado de "derivativos" seja mais regulamentado, que suas transações passem por câmaras de compensação, que haja lei federal tornando obrigatório o registro das negociações. Porque desde 2000 esse mercado - que inclui, entre muitos outros itens, as negociações com contratos futuros de produtos como grãos e carnes - está desregulamentado. Isso permite, junto com outros caminhos, que se negociem dezenas de vezes no mesmo ano - multiplicando artificialmente seu valor - as safras de determinados produtos. Ou seja, um mercado desligado da realidade concreta gera ganhos e lucros que estimulam um consumo geral além da possibilidade real de reposição dos recursos naturais - e essa é uma das crises que "ameaçam a sobrevivência da espécie humana", segundo Kofi Annan. O plano anunciado pelo presidente Obama prevê muitas coisas, como a possibilidade de intervenção governamental no mercado financeiro, inclusive para assumir o controle e impedir a quebra de grandes companhias; a exigência de mais capital para empresas; a criação de uma agência financeira para proteger o consumidor - entre outros pontos. Mas parece continuar distante da questão central: o "descolamento" do mercado financeiro em relação à realidade concreta e suas possibilidades. A preocupação financeira reforça-se com os últimos números do PIB - queda de 4,5% na zona do euro, 3% nos EUA, 6,8% no Japão, 2,2% na América Latina e Caribe. No mundo, queda de 2,9% prevista para este ano; no Brasil, 1,1% segundo o Banco Mundial. E para socorrer os dramas aí embutidos, a Europa já destinou 21% do seu PIB para o setor financeiro; a Grã-Bretanha, 69%; a Irlanda, 200%; a Suécia, 50%; os EUA, 18% (Estado, 16/6). No Brasil não há muitos números, a não ser a liberação pelo Banco Central de R$ 100 bilhões dos depósitos compulsórios dos bancos (que, segundo as empresas, não aumentaram o crédito disponível - foram em sua quase totalidade para aplicações em títulos governamentais). Artigo do economista Amir Khair, da FGV, publicado por este jornal (22/6), também levanta questões na mesma direção, ao lembrar que o spread cobrado pelos bancos no Brasil "é o maior do mundo", 11 vezes maior que a média nos países "desenvolvidos". Tudo isso, mais uma vez, remete à questão de o Brasil não conceber e defender nos fóruns mundiais uma estratégia fundamentada na posição privilegiada que desfruta em termos de recursos e serviços naturais - que são, concretamente (e não os recursos financeiros), o fator escasso no mundo. E que é preciso sempre repetir: temos território continental, quase 13% do fluxo hídrico planetário, entre 15% e 20% da biodiversidade do mundo, possibilidade de matriz energética "limpa" e renovável (decisiva para o clima), com hidreletricidade, energia eólica e solar, das marés, das biomassas. E nosso mercado interno, principalmente o de baixa e média renda, provou na recente crise que é capaz de assegurar também uma posição mais equilibrada que a dos países industrializados. Mas não podemos esquecer que temos ainda pelo menos 30% da população abaixo da linha da pobreza. Que consumimos recursos naturais além da disponibilidade média mundial. E que somos um dos maiores emissores de gases poluentes no mundo. Está na hora de repensar tudo. Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes@uol.com.br