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Opinião|Corrupção sistêmica e Direito Penal

Quando o Brasil estará numa situação como a dos EUA, onde prevalece o rigor do FCPA?

Atualização:

No julgamento do mensalão, as discussões no STF giraram em torno da “teoria do domínio do fato”, doutrina criada por criminólogos alemães que dá margem às mais variadas interpretações – inclusive políticas. No julgamento das ações sobre corrupção sistêmica da Petrobrás e da Odebrecht, abertas com base numa operação que mudou os padrões de investigação criminal no País, destacam-se as acirradas discussões entre juízes de 1.º grau e de tribunais superiores sobre o alcance das leis penais mais recentes, que fundamentam as condenações de políticos e executivos acusados de atos ilícitos contra a administração pública nacional e estrangeira.

Uma dessas leis é a que trata das organizações criminosas (12.850). Sancionada em 2013, já propiciou um número expressivo de delações premiadas de dirigentes de corporações – só na Petrobrás foram mais de 60 e, na Odebrecht, 77. Outra é a Lei Anticorrupção (12.846/13), que referendou o compromisso do Brasil – um dos últimos signatários sem lei própria na matéria – com a Convenção Antissuborno da OCDE. Antes dela, uma empresa que fosse objeto de uma investigação podia alegar que o ato de corrupção foi iniciativa isolada de um funcionário, sendo trabalhoso comprovar a culpa de diretores e controladores. A lei introduziu a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, permitindo que uma empresa acusada de corromper agentes públicos e fraudar licitações seja punida por corrupção, independentemente da prova de dolo e conhecimento dos administradores envolvidos.

A fonte de inspiração da Lei Anticorrupção são leis americanas concebidas para garantir igualdade de condições entre competidores nos mercados nacionais, punindo empresas que obtêm vantagens subornando agentes de governos locais. Editado em 1977, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) proíbe que operem nos EUA, independentemente de sua nacionalidade, empresas acusadas de subornar autoridades em outros países. Também tem jurisdição extraterritorial, à medida que pune empresas envolvidas em corrupção, independentemente de o ilícito ocorrer fora ou dentro do território americano. E estende as punições aos gestores e acionistas, independentemente do local de residência. Nos últimos seis anos, o Department of Justice (DoJ) e a Securities and Exchange Commission (SEC) processaram mais de 60 empresas por violação do FCPA. Em 2008, a Total pagou US$ 398 milhões para arquivar a acusação de ter subornado dirigentes iranianos. Acusada de ter um padrão de suborno sem precedentes, a Siemens pagou US$ 800 milhões.

A concentração do poder empresarial e a integração mundial dos mercados financeiros exigiram mudanças radicais num direito positivo elaborado com base em quatro pilares: soberania, poder, território e representação. Obrigados a se ajustar a cenários complexos, operadores jurídicos passaram a ter dificuldades para enfrentar conflitos inéditos por meio de normas concebidas para realidades mais simples. No campo do Direito Penal, considerado a manifestação jurídica por excelência da soberania dos Estados, essas dificuldades foram criadas pela expansão do narcotráfico, fraudes financeiras e terrorismo. Por envolverem sofisticadas redes de transgressão, esses delitos têm caráter transnacional, o que levou a articulação entre os recursos ilícitos captados por essas redes e os circuitos bancários a pôr em xeque o Direito Penal com jurisdição territorial. Como enfrentar o crime transnacional organizado com tipificações e procedimentos penais forjados para crimes interindividuais e de alcance nacional?

Desde então, cresceu a opção por novos critérios para determinar uma jurisdição penal transterritorial, sob influência do pragmatismo inerente à cultura jurídica anglo-saxã, em detrimento do formalismo da cultura romano-germânica. A OCDE tem estimulado a assinatura de convênios para fechar paraísos fiscais. Nos EUA, para adequar o FCPA a lidar com redes transnacionais de transgressão, o Sarbanes-Oxley Act, editado em 2002, após o escândalo da Enron Corporation, e o Dodd-Frank Act, editado em 2010 com o objetivo de proteger investidores contra falências bancárias, ampliaram o número de casos passíveis de punição. Quando a corrupção na Petrobrás foi denunciada, Dilma Rousseff tentou desqualificá-la. Mas, meses depois, a PwC Brasil, que auditava as contas da empresa, negou-se a aprová-las caso o presidente de uma subsidiária, acusado de irregularidades, não fosse afastado. Em seguida, o DoJ e a SEC abriram investigações para apurar denúncias de corrupção. Esse caso contrasta com o que afirmavam os juristas ingleses do século 18. “O que não está no território está fora do território”, diziam, ao justificar a circunscrição do Direito Penal às fronteiras de cada país. Como opera nos EUA, a Petrobrás está sujeita ao FCPA, podendo ser investigada pelo DoJ e pela SEC. A particularidade está no fato de que é controlada por um governo estrangeiro.

Neste cenário, são inevitáveis as tensões entre os planos locais e supraestatais de enfrentamento do crime transnacional. No plano nacional, é natural que investigações de corrupção sofram pressões políticas. Como as inovações introduzidas pela legislação anticorrupção são recentes no País, elas contêm falhas – a Lei 12.846/13, por exemplo, não define com clareza os limites dos órgãos com competência punitiva para firmar acordos de leniência. Isso permite que algumas decisões dos juízes da Lava Jato não só possam ser criticadas juridicamente, como também sirvam de pretexto para serem agredidos moralmente por políticos. Este clima estimula o Congresso a patrocinar projetos que cerceiam procuradores e magistrados. Nos países onde as mudanças no Direito Penal foram promovidas há mais tempo, como nos EUA, o cenário é outro. Nele, prevalece o rigor do FCPA, que blinda investigações de denúncias de corrupção contra pressões políticas, garantindo que executivos e acionistas – da matriz ou de coligadas – condenados por corrupção não fiquem impunes. Quando o Brasil estará numa situação como essa?

*É PROFESSOR TITULAR FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

Opinião por José Eduardo Faria