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Cortesia com o chapéu alheio

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Por Redação
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Como que para confirmar que de boas intenções o inferno está cheio, conforme foi noticiado pelo Estado (12/3) o Ministério da Cultura (MinC) encaminhou para análise da Casa Civil da Presidência da República um projeto de alteração da lei de direitos autorais (Lei 9.610/98) com o objetivo de, em benefício de alunos carentes, liberar para uso não comercial a reprodução integral de obras que sejam consideradas adequadas a fins didáticos. Hoje, apenas a reprodução parcial é legalmente permitida, o que não impede o crescimento de uma pirataria quase fora de controle, que causa sérios prejuízos para toda a cadeia de produção do livro.Antes e acima da necessária e justa preservação dos legítimos interesses do mercado editorial, está em jogo uma questão de princípio que, evidentemente, os agentes públicos empenhados na novidade não querem ou não são capazes de levar em conta: o direito autoral é um dos direitos humanos fundamentais e está definido e regulamentado nas leis do País e em vários tratados internacionais de que o Brasil é signatário. Nesse sentido, a medida proposta pelo MinC para beneficiar estudantes acabaria cumprindo a função antipedagógica de patrocinar o aviltamento de um princípio básico para a formação dos jovens. É indeclinável o dever do Estado de promover amparo aos estudantes que não têm condições de arcar com os geralmente altos custos do material bibliográfico que o ensino técnico e o superior exigem. Parte dessa bibliografia é importada, uma vez que a relação custo-benefício desestimula sua publicação no País. Tornar esses livros acessíveis a todos os estudantes é uma questão que se insere, portanto, no contexto mais amplo da igualdade de oportunidades, fundamento da democracia. Mas é um grave equívoco, um contrassenso, imaginar que a função social do Estado democrático moderno possa ser cumprida, atropelando-se os fundamentos que o sustentam.Uma maneira de o Estado facilitar o acesso dos estudantes aos livros indispensáveis à sua formação é prover o ensino público de bibliotecas com acervos adequados e suficientes - imagina-se que para quem estuda em estabelecimentos de ensino particulares o problema não seja tão grave. É essencial, também, levar as bibliotecas ao público em geral. Desde que o lulopetismo chegou ao poder há mais de nove anos prometendo criar uma biblioteca em cada um dos quase 6 mil municípios brasileiros, essa meta esteve sempre "na iminência" de ser alcançada. Mas a realidade é que uma grande quantidade de comunas ainda carece desse equipamento cultural básico. E em grande parte as bibliotecas existentes, principalmente as mais recentes, inauguradas no embalo do foguetório populista, não são operacionais, por razões que variam da falta de profissionais minimamente habilitados para geri-las à ausência de interesse de autoridades municipais. O preço dos livros no Brasil, embora modicamente decrescente nos últimos anos, ainda é alto para os padrões de consumo da população. Este padrão certamente se elevou desde a estabilização da moeda há quase 20 anos, mas não se tem refletido com a mesma intensidade no consumo de livros. Ainda ostentamos um índice de leitura anual per capita de menos de 2 livros, o que nos ombreia com os mais notórios países subdesenvolvidos do nosso próprio continente, da Ásia e da África. E essa, a baixa demanda, ainda é a razão principal, mas não a única, dos preços em geral elevados que são praticados pelo mercado editorial brasileiro. Dessa perspectiva, a intenção do governo de liberar a cópia de livros para efeitos didáticos terá o inevitável efeito subjacente de inibir mais ainda a demanda, pressionando os preços ainda mais para cima.O governo anterior anunciou com estardalhaço medidas espetaculares na área da Cultura, como a revisão da Lei Rouanet e o Vale-Cultura. O tempo passa e essas novidades continuam em processo de "aprimoramento" em alguma gaveta do poder. Talvez esse seja o melhor destino para esse projeto infeliz que se propõe a fazer cortesia com o chapéu alheio.