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Opinião|Cracolândia

Prefeito João Doria foi precipitado ao afirmar que tráfico e o uso de crack na região acabaram

Foto do author Carlos Alberto Di Franco
Atualização:

Domingo, 21 de maio. Começa uma megaoperação da polícia na cracolândia. Gritaria, corre-corre, bombas de gás lacrimogêneo. Centenas de policiais fazem uma varredura na região e, ao lado de funcionários da prefeitura e de máquinas retroescadeiras, desmantelam o cenário de morte e autodestruição humana que, vergonhosamente, convive com a cidade mais rica do País. O prefeito João Doria gravou um vídeo para as redes sociais. Foi enfático: “A cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais. Nem a prefeitura permitirá nem o governo do Estado. A partir de hoje, isso é passado”. Foi precipitado. Não acabou. Com a dispersão dos usuários, uma nova cracolândia surgiu a menos de 400 metros da antiga, na praça Princesa Isabel. O tráfico e o uso de crack continuaram. Outras cracolândias brotaram, do Minhocão à avenida Paulista. A coisa não é tão simples. Não se resolve no grito e no marketing. É preciso um projeto sério, articulado, sem improvisações.  Acredito na determinação do prefeito e do governador de São Paulo. Mas espero que façam uma autocrítica da recente operação. Reforcem os pontos positivos e retifiquem os erros cometidos. Não é possível conviver com uma cidade assustadora: edifícios pichados, prédios invadidos, gente sofrida e abandonada, prostituição a céu aberto, zumbis afundados no crack, uma cidade sem alma e desfigurada pelas cicatrizes da ausência criminosa do poder público. Mas uma só andorinha não faz verão. É preciso uma ação articulada com todos os atores: governo, Judiciário, sociedade. A cidade de São Paulo foi demitida por seus governantes. São Paulo, a cidade mais rica do País e um dos maiores orçamentos públicos, tem sido um retrato de corpo inteiro da ineficiência do Estado. E nós, jornalistas, precisamos mostrar a realidade. Administrações anteriores falavam de uma revitalização que só existia no papel. O novo governo merece um crédito de confiança, mas esperemos que não sucumba ao ilusionismo do marketing. Mas voltemos ao tema das drogas. A dependência química tem muitas frentes: questões sociais, humanitárias, de saúde, combate ao crime, fortalecimento das entidades de recuperação de adictos, batalhas jurídicas e enfrentamento dos dogmas ideológicos. Basta pensar, amigo leitor, na gritaria contra as internações compulsórias. Sem decisão livre, por óbvio, não há recuperação consistente. O dependente precisa querer. Mas para exercer a liberdade é preciso ter um mínimo de capacidade de discernimento. A internação compulsória, não indiscriminada e feita com aval psiquiátrico, pode representar a ruptura das algemas que aprisionam o dependente num círculo infernal.  A política transformou-se num espetáculo. A discussão das ideias e dos planos de governo sucumbiu às interdições da ditadura politicamente correta e às regras ditadas pela produção de um show. Temas relevantes para o futuro da sociedade primam pela ausência. Não se discute um projeto sério para a segurança pública, não obstante a surpreendente desenvoltura das facções criminosas. Enquanto isso, caro leitor, a violência avança impune e o seu principal estopim, o mercado das drogas, continua fora da agenda pública.  Multiplicam-se, paradoxalmente, declarações otimistas a respeito das estratégias de redução de danos. O essencial, imaginam os defensores da nova política, não é a interrupção imediata do uso de drogas pelo dependente, mas que ele tenha uma melhora em suas condições gerais. A opção pela redução de danos pode ser justificada em determinadas situações, mas não deve ser guindada à condição de política pública. Afinal, todos sabem que, assim como não existe meia gravidez, também não há meia dependência. Embora alguns usuários possam imaginar que sejam capazes de controlar o consumo, cedo ou tarde, descobrem que, de fato, já não são senhores de si próprios. Não existe consumidor ocasional. Existe, sim, usuário iniciante que, frequentemente, engrossa as fileiras dos dependentes crônicos. Afinal, a compulsão é a marca do usuário de drogas.  Mas os “vanguardistas” não desistem. Defendem, irresponsavelmente, a criação de locais especiais de “uso seguro” das drogas para dependentes graves. Nesses espaços não haveria repressão ao consumo. Os viciados seriam estimulados a substituir drogas pesadas por outras supostamente leves, como a maconha. A pretensa inocuidade da maconha termina, frequentemente, no sequestro da esperança e do futuro. Observa-se, na contramão da realidade que grita nas trágicas esquinas da cracolândia, um crescente movimento a favor da descriminalização das drogas, sobretudo da maconha. Bandeira frequentemente agitada em certos setores do entretenimento e em alguns redutos de profissionais da saúde pública, a descriminalização não ajudará nada. Ao contrário. Agravará, e muito, o drama das pessoas e da cidade. A verdade precisa ser dita. Não se pode sucumbir à síndrome da avestruz quando o que está em jogo é a vida das pessoas. O hediondo mercado das drogas está dizimando a juventude. Ele avança e vai ceifando vidas na cracolândia, nos barracos da periferia abandonada e no auê dos bares e boates frequentados pela juventude bem-nascida. Movimenta muito dinheiro. Seu poder corruptor anula, na prática, estratégias meramente repressivas. A prevenção e a recuperação, únicas armas eficazes a médio e longo prazos, reclamam um apoio mais efetivo do governo e da iniciativa privada às instituições sérias que lutam pela reabilitação de dependentes. Elas rompem o círculo vicioso das drogas e criam o círculo virtuoso da recuperação e da ressocialização. É sempre melhor apoiar o que já funciona do que cair da tentação de criar novas estruturas. São Paulo e o Brasil precisam encarar a realidade. A operação na cracolândia, desmantelando um espaço cruel e vergonhoso, teve o mérito de abrir o debate.

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

Jornalista