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Crueldade e devassidão

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Por Gaudêncio Torquato
4 min de leitura

Quem quiser saber acerca da saúde de uma sociedade basta verificar seus costumes, sua moralidade. Por essa observação de Nietzsche, em Genealogia da Moral, o mundo está bastante doente e o Brasil, conhecido pela permissividade na esfera dos costumes, já está na UTI. Prova chocante da metástase que contamina as células do corpo social - ao lado de tantas outras que se multiplicam nas vitrines globais da violência e do sexo - é um jogo japonês de computador, de nome Rapelay, que simula assédio sexual, estupros, pedofilia e aborto, e que se encontra à venda nas ruas de São Paulo ou pela internet, escapando aos olhos das autoridades e engrossando um pacote de bugigangas de um corrosivo PIB pirata. Já não bastasse a violência desmesurada, caprichada nos detalhes de uma técnica que combina roteiro, precisão do movimento, ritmo, cores e desfecho surpreendente, sob rompantes de satisfação dos participantes, os jogos simulam situações que deixam de ponta-cabeça os valores básicos da Humanidade. A noção de civilização universal implica a aceitação de valores, crenças, práticas e instituições comuns pelos povos do planeta. Significa, ainda, o compartilhamento de conceitos fundamentais, como o fato de que um assassinato é um ato criminoso ou uma perversidade, de que a família é um berço de valores, de que a mãe é a célula mater do núcleo e de que a criança deve receber cuidados especiais para seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. Propaga-se, assim, pela teia das nações certo sentido de moral, cujo peso até pode ser diferente entre as culturas, mas conservando uma base mínima de aceitação do que é certo e errado. Sob essa compreensão, podemos distinguir sociedades civilizadas de comunidades primitivas e bárbaras. Pois bem, ao escancarar a violência de um homem molestando uma mãe num trem, consumando o estupro num parque, fotografando a vítima, obrigando-a a chegar até suas filhas, que serão violentadas e engravidadas, o tal jogo japonês nada mais faz que implodir o edifício civilizatório. O arremate dessa escatologia de horrores é o ato de convencimento para as filhas abortarem. Jamais se viu uma agressão tão explícita a seres e emblemas que simbolizam a pureza e a beleza da vida humana. Na verdade, esse "divertimento", que pode ser adquirido ao custo de alguns reais, é uma pequena amostra do paradigma do caos, que Samuel P. Huntington descreve como "quebra da lei e da ordem em todo o mundo, onda global de criminalidade, máfias transnacionais, cartéis de drogas, violência étnica e religiosa, crescente número de viciados, debilitamento geral da família, declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países". A monstruosidade embutida no apetrecho nipônico merece profunda reflexão, a começar pela dificuldade de pais de família para desviar seus filhos do lixo da indústria do entretenimento. (E o que dizer quando os próprios pais são consumidores dessa modalidade diversionista?) Quando uma semente encontra terra fértil, germina. E a nossa terra, convenhamos, tem muito adubo para fazer prosperar as sementes da globalização. Cerca de 43 milhões de brasileiros já acessam a internet. O brasileiro lidera o ranking de navegação na rede, com uma média de 24 horas mensais de conexão, secundado pelos japoneses, franceses e norte-americanos. Um dos efeitos perversos da globalização - acentuados pela internet - é o rompimento das fronteiras nacionais, fato que propicia aos povos do mundo conhecer "coisas boas" e "coisas ruins". Disso resulta a polêmica: como fazer para separar o joio do trigo? Os Estados modernos não têm sido eficazes na tarefa de coibir a pirataria ou controlar as redes eletrônicas da internet. Legislação de controle inexiste. No Brasil, o relator do projeto para coibir os crimes digitais, senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), teve de recuar por conta da reação pública, que via nele invasão de privacidade. Nesse ambiente de extrema liberalidade e à sombra do poder formal, expandem-se os braços de um contundente poder informal, manobrado por máfias. Quanto mais permissiva a cultura de uma nação e tênue a fisionomia institucional, menos força terá o Estado para fixar eixos morais. Esse é o caso do Brasil, onde a desorganização e a anomia se expandem, bastando ver a expansão do império da violência em algumas capitais, a partir do Território Livre dos Morros Cariocas. Em algumas esferas, há dados que causam perplexidade. No Brasil, são 165 vítimas por dia, 7 por hora, segundo estudo da Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência. As barbaridades aparecem quase todos os dias. Uma garota de 13 anos foi estuprada por cinco homens - um deles um adolescente de 16 anos - em Ocauçu (SP) e a agressão, gravada em vídeo, corre na internet. Em Marília, o diretor-geral de um colégio religioso é acusado de se fazer passar por uma adolescente de 15 anos e induzir uma menina de 12 anos a tirar a roupa e expor seu corpo diante de uma webcam. São notícias da semana que passou. Impressiona constatar que uma Nação que está entre as dez economias do planeta, que conta com milhares de leis e uma miríade de organizações governamentais não consegue proteger de maneira adequada suas crianças e adolescentes. Atraídos pelo gatilho da violência e da devassidão, que as armas de exércitos piratas-tecnológicos lhes proporcionam, e por falta de controle, os contingentes jovens são os primeiros a se contaminar com o sangue da banalização. De tanto conviver com atos violentos, de tanto apertar teclas que lhes proporcionam magníficas vitórias virtuais, os jovens já não sentem diferença entre o frio e o calor da vida. Seu corpo e seu espírito tornaram-se impermeáveis às sensações do meio. Quinquilharias e joguinhos que simulam as mais bestiais aberrações ocupam o centro de suas consciências. Quanto mais choro de vítimas nuas no jogo Rapelay, mais urros de vitória. "Não há povo que não tenha sua crueldade particular", já alertava, no passado, o filósofo Montesquieu. Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político