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Cuba, a aventura que deu certo

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Por Leôncio Martins Rodrigues
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O socialismo cubano e o governo de Fidel Castro completaram 50 anos. Do ângulo da prática e da teoria, o socialismo caribenho veio por um caminho inusitado. Em muitos aspectos, chega a ser uma negação do marxismo-leninismo. A revolução cubana não resultou de uma revolução operária ou camponesa. Do ângulo das classes ou frações de classes ou setores sociais envolvidos, encontramos predominantemente as classes médias, ou, mais exatamente, o setor das classes médias não-proprietárias. Os membros do Diretório Nacional do Movimento 26 de Julho, a começar pelo seu chefe máximo, vinham predominantemente da intelligentsia, quer dizer, das camadas médias e altas cultas: jornalistas, médicos, estudantes, etc., que iriam fornecer os quadros burocráticos e tecnocráticos do novo regime. Fidel Castro e Raúl eram de uma família muito rica, mas não tradicional. Eram filhos de um grande proprietário rural de origem espanhola. Fidel formara-se em Direito na Universidade de Havana, onde convivera com a elite política cubana. A universidade era um foco de agitação política radical e um celeiro de militantes revolucionários, logicamente de classe média para cima, amplamente envolvidos com a política nacional. (Para ilustrar: em março de 1957, o Diretório Estudantil Revolucionário realizou nada menos que um ataque armado ao palácio presidencial para eliminar o ditador Batista. O ataque malogrou e resultou na morte de cerca de 35 estudantes). A via escolhida por Fidel Castro para a tomada do poder sem o povo - o desembarque de dezembro de 1956 no litoral cubano, com pouco mais de 80 homens e escasso armamento - foi uma aventura que deu certo. Mas quase deu errado. O Granma errou o local do desembarque e encalhou numa praia lodosa. Os revolucionários safaram-se com muita dificuldade. Localizados pelo Exército, foram quase exterminados. O início da ação insurrecional poderia ter terminado como o malogrado ataque aos quartéis de Moncada e Bayamo em 26 de julho de 1953. Em Sierra Maestra, os tempos iniciais da guerrilha foram difíceis. Contudo, como sabemos, no final tudo acabou bem para Fidel e mal para Fulgêncio, resultado que já não pode ser atribuído à sorte. A ação do comandante supremo deixara de ser uma aventura para se transformar numa nova via para o socialismo. Regimes socialistas não florescem espontaneamente do modo de produção capitalista, como a guerrilha fidelista foi mais um exemplo. São implantados manu militari pela ação de um líder e de um grupo pequeno de seguidores abnegados. A expressão "construção do socialismo" não é uma metáfora. A futura sociedade planejada (como o nome indica) é uma construção institucional que vem de um projeto de poder pessoal máximo. Vale um exemplo mais próximo de nossos tempos e fronteiras. A Venezuela de hoje mostra bem como o projeto do socialismo (bolivariano) se identifica com a extensão do poder pessoal de Chávez. Não é por acaso. Nenhum outro regime político, como o socialismo, oferece tanto poder a quem tem poder. No caso cubano, a opção socialista foi uma decisão de Fidel. Ela não estava explicitada nos objetivos iniciais do Movimento 26 de Julho. Embora a guerrilha encontrasse apoio entre os camponeses e Fidel tivesse sido festivamente acolhido pela população de Havana, não houve "pressão de massas" pelo socialismo. Juntamente com a derrubada da ditadura de Batista, o Movimento 26 Julho levantava bandeiras democráticas, nacionalistas e de justiça social. Nada que não pudesse ser alcançado sob o capitalismo. Sigamos os acontecimentos. Primeiro, houve a derrubada da ditadura de Batista, que alçou Fidel Castro à condição de grande líder nacional. A oposição "burguesa", ingênua, acreditou que a ilha se encaminharia para eleições e para uma democracia representativa. Mas o poder na ilha caribenha ficaria com quem tinha a força e queria mais poder. Não fora para criar uma democracia representativa e se sujeitar a eleições que a guerrilha derrotara a ditadura. Rapidamente, os ex-guerrilheiros passaram à introdução de mecanismos repressivos muito mais amplos e duros do que os existentes na ditadura de Batista. A intenção era eliminar rapidamente toda oposição. Por exemplo: criação acelerada do Exército Revolucionário e de uma "milícia do povo", postergação de eleições ad infinitum, além, é claro, da instalação de tribunais revolucionários para julgar (em muitos casos, fuzilar sem muito formalismo burguês) membros da antiga administração e mesmo antigos guerrilheiros não-comunistas. Em termos da Ciência Política, dir-se-ia que se passou de um sistema autoritário para outro, totalitário. No plano econômico, as nacionalizações e estatizações puseram fim às camadas proprietárias. Uma tecnocracia estatal iria substituir os empresários privados. Os projetos de socialização foram elaborados secretamente por uma pequena equipe que se reunia na casa de praia de Che Guevara. Não houve debate mais amplo das medidas a serem adotadas. O socialismo cubano instalou-se pelo alto, ou "pelas costas da maioria da população", como apontou há certo tempo Tad Szulc, autor da famosa biografia de Fidel Castro. Mas por que a opção socialista, se inexistia em Cuba um forte movimento comunista e entre os objetivos da guerrilha não estava a abolição do capitalismo? Havia, é certo, lideranças comunistas mais ou menos ocultas no Movimento 26 de Julho. Havia também, contudo, correntes anticomunistas. Fidel aliou-se às primeiras. Não por acaso era a escolha que lhe traria poder total e vitalício. Os simpatizantes do regime castrista tendem a aceitar que não haveria socialismo na ilha não fossem as habilidades militares e políticas de Fidel Castro. Pode ser. Mas, por coerência, conviria deixar de lado o marxismo e jogar no cesto de lixo as teses que entendem o socialismo como fruto da decadência do modo de produção capitalista e da revolução operária. Leôncio Martins Rodrigues, professor titular aposentado de Ciência Política da USP e da Unicamp, é membro da Academia Brasileira de Ciência