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De Gutenberg à televisão

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Por MARIO CESAR FLORES
3 min de leitura

São comuns, se não mais comuns na nossa TV os programas de padrão medíocre, influentes na formação do ânimo coletivo. É a qualidade condicionada pelas injunções do mercado de consumo de massa, estendido ao entretenimento, à informação e à propaganda - problema corrente no mundo onde a mídia é livre.No topo da desconstrução cultural temos os reality shows, que, valendo-se da licenciosidade permissiva do povo, espetacularizam a anormalidade, atribuindo-lhe uma falsa distinção que a faz até desejada. Em nível similar os programas de auditório, com matérias de gosto discutível, algumas supostamente cômicas beirando o grotesco, competições de umas poucas atraentes a em geral rocambolescas e entrevistas em que os entrevistados, mesmo quando deveriam estar constrangidos, aparentam satisfação por aparecerem na TV - hoje uma ânsia popular paranoica.Na música popular, o acústico sofrível (eventualmente bom...) associado ao visual espalhafatoso suplanta os programas de músicas bonitas, tocadas e cantadas sem aparência pessoal e coreografia exóticas; quanto à erudita, poucos programas, em emissoras de audiência limitada.Novelas e filmes apresentam por vezes conteúdo positivo - nas novelas, em geral refletindo mazelas da sociedade -, embora seja mais comum a banalidade que diverte e empolga a grande massa. E no esporte, o futebol, refúgio do fim de tarde nos domingos, é prejudicado por entrevistas e comentários vazios e pela tortura acústica dos gooooooooooools intermináveis.Acrescente-se a esse cenário a ênfase esfuziante atribuída ao que responde ao ânimo folgazão do brasileiro - ênfase compreensível, já que a TV precisa de audiência para viver. Carnaval, réveillon, praia ensolarada, feriadão e futebol são privilegiados com programas, imagens e comentários sedutores e frequentes. Anos-luz acima da atenção que merecem o trabalho e o estudo, o meio ambiente, a cultura e a arte, a ciência e a tecnologia, que inspiram programas até bem montados, mas, como não atraem a grande massa, são apresentados em horários de fraca audiência.Passando aos noticiários, existem alguns clássicos, de boa qualidade informativa e de apresentação competente e simpática. Mas mesmo esses são comprometidos pela enxurrada de publicidade enfadonha e não escapam da avidez popular pelo anormal: fatos que mereceriam minutos se estendem por dias ou semanas, com cenas repetidas e detalhes sem interesse. Julgamento de criminoso vira novela - e a escolha do papa, disputa internacional com direito a torcida patriótica...Nos noticiosos (?) sensacionalistas, estruturados sobre a anormalidade do cotidiano, convém ter o controle à mão. O importante neles é a combinação espetacularizada da imagem com a palavra: escândalos, acidentes e catástrofes, violência e crimes são apresentados em estilo de auto de fé midiático, em que a exaltação do trágico, a repetição de frases de impacto e o linguajar apelativo (qualquer público é "galera", dinheiro é "grana"; e o que seria "cara-pálida"?) turbinam o sensacionalismo. Não surgindo fatos novos sensacionalizáveis, os superados são mantidos vivos: o mercado de consumo do anormal tem de ser saciado.Agora, a propaganda. Temos quadros inteligentes e divertidos, mas são frequentes os de gosto visual, acústico e mental medíocre - a exemplo da propaganda que trombeteia a tecnologia estimuladora da frivolidade consumista de quem não entende o que é dito, mas é prazerosamente seduzido a comprar o que não entende e não precisa. Você liga a TV para assistir a um noticiário e é inundado por propaganda de acústico e ótico precários, pela sequência berrada dos "xis e 99", ilusão publicitária que, na realidade, significa "xis + 1": é a TV no mundo consumista. De passagem: no tocante ao padrão mental, a "propaganda política obrigatória" não é melhor (sejamos complacentes...) do que a comercial, com uma atenuante: é esporádica e não se estende à TV por assinatura...Há 500 anos a imprensa de Gutenberg estimulou o conhecimento na diminuta minoria que sabia ler, da população global de 1 bilhão de pessoas. A ascensão cultural impulsionada pela modesta imprensa da época era restrita a essa minoria, mas seus efeitos positivos se estenderam a todos, com o Renascimento, a Reforma e o Iluminismo. Hoje temos no mundo de 7 bilhões e a TV, que chega à grande massa, dispensando saber ler e, valendo-se da combinação do verbal com a imagem, estimula e diverte o ânimo folgazão do povo, sensacionaliza e banaliza a anormalidade, cria necessidades desnecessárias, constrói aiatolás na política, reis, imperadores e fenômenos no esporte e espetaculariza o cristianismo televisado. Diferente da imprensa de acesso limitado à escassa minoria leitora de há 500 anos, a TV é democrática, diverte e informa a população em geral. Mas não vem apoiando a ascensão cultural dessa imensa audiência na dimensão possibilitada por seu excelente potencial comunicativo, bem servido pela tecnologia moderna, já implantada nas emissoras brasileiras.A dinâmica financeira da televisão, ela também um negócio, obriga-a à programação que atenda ao grande público, razão por que sua maior parte tem mesmo de se ater ao que agrada à avidez lúdica do povo. Mas nossa TV é concessão pública e, como tal, deveria contribuir, mais do que contribui, para melhorar o frágil padrão cultural brasileiro. Não se trata de "controle social da mídia", com evidente sabor de censura autoritária e de resultado duvidoso quanto àquela contribuição. Mas se poderia ao menos condicionar concessões e benefícios (a exuberante e pródiga propaganda do governo e de empresas estatais...) a um mínimo de empenho positivo. Fundamentalmente, a autocontenção moderadora dos excessos de vulgaridade ou banalidade vazia e a apresentação, em horários acessíveis ao grande público, de programas que contribuam para a melhora do padrão cultural dos brasileiros. * ALMIRANTE (REFORMADO).