14 de maio de 2010 | 00h00
Embora contivesse pouco mais de cem gramas de césio, a bomba rompida provocou mortes e milhares de contaminações entre as mais de 100 mil pessoas que passaram por exames nos dias posteriores. Aterrorizadas, como toda a população da cidade, pelo noticiário das televisões, que mostrava pássaros e gatos entrando livremente e saindo da área interditada onde fora rompida a cápsula - diante da impotência dos técnicos da CNEN, a essa altura já usando macacões providenciados pelo governo do Estado, mas sem saber o que fazer com os milhares de toneladas de resíduos da casa demolida do catador de lixo e de outros locais contaminados. A lei federal mandava que fossem para um depósito federal inexistente e que nenhum Estado aceitava. O governo goiano, sem outra solução, mandou-os para um antigo lixão a uns 20 km de Goiânia - onde a CNEN faria depois o depósito definitivo, embora para isso não fosse adequado (o depósito teve de ser implantado acima do solo, dada a presença de um lençol freático quase superficial).
Uma bomba com pouco mais de cem gramas de césio, perto do combustível ou dos resíduos de uma usina nuclear, é quase brincadeira de criança. Mas o governo brasileiro, que até hoje não tem solução para os resíduos altamente radiativos das Usinas Angra 1 e 2 - mantidos dentro de piscinas no interior das próprias usinas -, já tomou a firme decisão de construir algumas outras unidades. Não que haja alguma solução à vista para o mais perigoso dos lixos - ninguém ainda a encontrou, no mundo todo: o projeto norte-americano de um depósito 300 metros abaixo da Serra Nevada (a maior esperança) continua embargado pela Justiça, por falta de garantias. Mas, ainda assim, programam-se usinas para o Nordeste e para o Sudeste. E Angra 3, com custo previsto de muitos bilhões de reais, já tem a primeira licença, embora o conceituado físico brasileiro Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e coordenador do científico do Programa Brasileiro de Mudanças Climáticas, tenha dito que se deve encarar "com muita cautela" um projeto de usina nuclear à beira-mar, tendo em vista o processo de elevação do nível das águas dos oceanos (inclusive no litoral brasileiro), já em curso, e as previsões de novas elevações.
É mais um capítulo desse inacreditável processo decisório na área energética do Brasil, em que se vai avançando e programando a ampliação da oferta de energia, baseada em estimativas do crescimento da demanda altamente discutíveis - como já se escreveu aqui -, tendo em vista estudos que mostram outras possibilidades mais baratas e seguras: reduzir o consumo em até 30% com programas de eficiência e conservação de energia (como em 2001), aos quais se somariam 10% de ganhos na perdulária rede de transmissão (que desperdiça em torno de 15% do total transportado) e outros 10% repotenciando, a custos muito menores que na nova geração, antigos reatores de baixa produção. Tudo isso está em estudos da Unicamp, do WWF e outras instituições, diante dos quais os mandatários do setor se fazem de surdos, empenhados em grandes obras.
Tudo faz lembrar episódio do final da década de 80, quando a Eletrobrás contratou consultor muito renomado do Banco Mundial, Howard Geller, para analisar o plano de expansão previsto para uma década, que partia da "necessidade" de duplicar a oferta de energia, a um custo brutal. Geller deu parecer dizendo que o consumo de energia seria muitas vezes inferior ao projetado; mesmo que fosse maior, não haveria recursos disponíveis para a expansão planejada. Esqueceu-se o parecer e deu-se início a um plano logo abortado. E o tempo encarregou-se de mostrar que Geller tinha absoluta razão.
Agora, com base num crescimento projetado de 5,1% ao ano no consumo nacional de energia - mas sem discutir a matriz -, prevê o governo federal investimentos de R$ 951 bilhões na área de energia entre 2010 e 2019, dos quais 71% para petróleo e gás e 22,5% (R$ 214 bilhões) para energia elétrica, o que exigirá que novas fontes, inclusive 39 hidrelétricas previstas, gerem tanta energia quanto a Usina de Belo Monte (Estado, 5/5). E com baixíssima prioridade para fontes como energia solar, eólica e outras. A alegação é sempre a mesma - a energia eólica é "muito mais cara" que a hidrelétrica -, esquecendo, como lembra o professor Ildo Sauer (ex-diretor da Petrobrás, 2003-2007), que hoje o custo da energia elétrica é de R$ 110 por MW, como se alega na comparação com as energias alternativas, mas o preço final cobrado aos usuários nas tarifas é de R$ 450 - a não ser para os privilegiados consumidores do setor de eletrointensivos (alumínio, ferro-gusa e outros), que chegam a ter subsídios acima de 50% (e por isso os outros consumidores têm de pagar mais em suas contas).
É assim que se explicam usinas nucleares, Belo Monte e quejandos.
JORNALISTA. E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR
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