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Desenvolvimento e globalização

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Por Dom Odilo P. Scherer
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No dia 7 de julho passado o papa Bento XVI publicou sua primeira encíclica social, intitulada Caritas in Veritate (A Caridade na Verdade), retomando uma tradição consolidada pelos seus predecessores que, ao longo de mais de cem anos, foram enriquecendo a Doutrina Social da Igreja com oportunas tomadas de posição diante das questões sociais em contínua evolução. A encíclica foi anunciada já no ano passado, também leva em conta a atual crise financeira e econômica, uma das mais graves dos tempos modernos. Já se passaram quase 19 anos desde a última encíclica social, Centesimus Annus (O Centésimo Ano), de João Paulo II, publicada um século após a histórica Rerum Novarum (A Respeito das Questões Novas, 1891), de Leão XIII. Enquanto isso, o mundo ficou mais globalizado e o panorama político e econômico passou por profundas transformações, suscitando vários problemas novos na convivência internacional e nas comunidades locais. Bento XVI vai à questão de fundo: quais princípios devem nortear a busca do desenvolvimento dos povos, para que seja verdadeiro e bom? Partindo da encíclica Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos, 1967), Bento XVI recorda como já naquela circunstância seu grande predecessor Paulo VI alertara que o progresso dos povos não podia prosseguir às cegas. E agora o papa afirma: sem Deus o desenvolvimento é negado, é desumanizado. O verdadeiro objetivo do progresso é o bem integral do todo ser humano. E o bem autêntico do homem não pode ser buscado na direção contrária do seu fim último. Portanto, em jogo está a relação entre o bem e a verdade, entre "veritas" e "caritas". Diante do impasse criado pela atual crise do sistema econômico e financeiro, o papa vai ao ponto: o desenvolvimento e o progresso precisam da verdade; sem ela o agir econômico e social fica desorientado e acaba sendo manipulado por interesses escusos e pelos jogos do poder, com efeitos desagregadores para a sociedade. A crise desencadeada por um mercado inflado por papéis podres é um exemplo disso. Poderíamos acrescentar que também a solução para a crise política dos Poderes do Estado, minados pela corrupção, só pode ser encontrada nas sendas, por vezes apertadas, da verdade. As atividades humanas precisam nortear-se por princípios éticos. E a presente crise nos obriga a repensar os rumos da economia, afirma o papa. Enquanto cresce, em termos absolutos, a riqueza econômica, aumentam as disparidades nas sociedades locais e entre países ricos e pobres; criaram-se demasiados mecanismos de garantia e proteção para os interesses de quem já tem muito, tanto no campo econômico como no do conhecimento e da técnica, dificultando o acesso a esses benefícios de quem está fora do grupo dos privilegiados. E também é necessário conceber de forma nova o papel dos poderes públicos do Estado e das organizações da sociedade, para assegurar de maneira mais eficaz o direito dos trabalhadores. As escolhas econômicas precisam ter como objetivo prioritário o acesso de todos ao trabalho digno. Falando dos problemas novos da economia num mundo globalizado, o papa chama a atenção para os riscos de uma ação econômica que visa o máximo de lucro no menor tempo possível: quem paga a conta são os trabalhadores e os pobres. É necessário superar a lógica da vantagem a qualquer custo, da concorrência feroz, do jogo competitivo sempre mais duro e da busca sôfrega da superação de um país por outro. O lucro e a vantagem, acima de tudo, também acabam sacrificando os valores culturais dos povos num ecletismo cultural insosso, em que uma coisa vale a outra e em que todos os comportamentos e estilos de vida são igualmente válidos, contanto que tragam vantagem. Também as consequências desastrosas para o equilíbrio ambiental dessa ação econômica sem princípios éticos são mais perceptíveis do que nunca. Até a vida humana é submetida ao cálculo da utilidade e da vantagem, com políticas de controle demográfico forçado, sem deixar de recorrer à supressão direta das vidas humanas "desinteressantes" mediante o aborto e a eutanásia. Na busca do progresso, o primeiro capital a ser salvaguardado e valorizado é a pessoa humana; no processo de globalização, não devemos resignar-nos a ser vítimas, mas assumir o papel de protagonistas, guiados pela caridade e pela verdade. Por isso, a economia globalizada precisa da ética para o seu correto funcionamento; não de qualquer ética, mas amiga da pessoa humana. Tal economia precisa integrar sempre mais os princípios da colaboração e da solidariedade, para o bem e a vantagem de toda a grande família humana. Antes de concluir, resumindo uma das preocupações de fundo da encíclica, o papa recorda mais uma vez: a finança, depois dos danos ocasionados à economia real pelo seu mau emprego, volte a ser um instrumento promotor do desenvolvimento; e os operadores financeiros redescubram o fundamento ético da sua atividade. Uma regulamentação do setor, para proteger os agentes mais fracos, também se faz necessária. Bento XVI lança novamente a proposta, já feita por João XXIII, nos anos 1960, da instituição de uma autoridade política mundial, coerente com os princípios de subsidiariedade e de solidariedade, que tenha um poder efetivo para governar a globalização. Por uma feliz coincidência, ou por desígnio da Providência, a nova encíclica foi publicada às vésperas de mais uma reunião dos representantes dos oito países mais ricos do mundo (G-8), na Itália - o Brasil também foi convidado. Se as lições do papa forem bem acolhidas, viverá em boa paz e ficará mais feliz a grande família humana globalizada. Um bom objetivo do desenvolvimento. Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo