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Deus e o diabo no teatro político

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Por GAUDÊNCIO TORQUATO
3 min de leitura

No Estado-espetáculo até Deus é usado como bengala de apoio aos representantes políticos. O ditador Francisco Franco, que governou a Espanha de 1939 a 1975, usava a Providência Divina para afirmar sua legitimidade: "Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa pátria para que a governemos". Não satisfeito, mandou cunhar nas moedas "caudilho pela graça de Deus". Idi Amin Dada, o cabo que se tornou marechal em Uganda, sanguinário e paspalhão, dizia ao povo que falava com Deus nos sonhos. Um dia deparou com a pergunta de um jornalista: "O senhor tem com frequência esses sonhos? Conversa muito com Deus?" Lacônico, o cara de pau respondeu: "Sempre que necessário". A História é cheia de casos de atores políticos que organizam o próprio culto, ornando sua aura com atributos divinos. Nietzsche chegou a proclamar: "A apoteose da aventura humana é a glorificação do homem-Deus". Mas o diabo também é avocado como protagonista do teatro da política fosforescente. A desastrada declaração do deputado pastor Marco Feliciano (PSC-SP) de que antes de presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados ela era dominada por Satanás comprova a tese. Nos últimos tempos, pelas nossas bandas, impulsionados por uma onda midiática que entra nas noites e madrugadas construindo um novo pentecostalismo, bispos, pastores e apóstolos não medem esforços para organizar exércitos do bem para enfrentarem as forças do mal. Do alto de uma montanha de dízimos, os comandantes da guerra contra as trevas estruturam impérios religiosos, ganham concessões do Estado (para execrar, frequentemente, o próprio Estado), locupletam cofres, organizam partidos e aumentam a fatia política com bancadas cada vez mais gordas. A expressão radical torna-se a arma de combate e de engajamento de milícias. Já a defesa de posições conservadoras funciona como escudo. A índole discriminatória explode. Essa é a composição que explica o imbróglio envolvendo o novo presidente daquela comissão. Flagrado postando mensagens homofóbicas e racistas nas redes sociais, Feliciano arremata, em inflamado sermão, que "pela primeira vez na História desse país um pastor cheio de espírito santo" conquistou espaço dominado pelas tropas de Belzebu. Destemperado, o deputado jogou no fogo do inferno companheiros que já comandaram aquele território "satânico". E assim comete um pecado ético, deixando transparecer a ruptura do princípio republicano que estabelece a separação entre igreja e Estado. É evidente que o verbo messiânico tenta desenhar a figura de um "herói" sob proteção divina. Maquiavelismo. A linguagem cortante, claro, resultará em bacia cheia de votos em 2014.Atente-se para o espírito do nosso tempo: culto da personalidade, competitividade entre igrejas, organicidade social, multiplicação de grupos de pressão, expansão da democracia participativa, abertura da locução social. Com o foguetório o pregador consegue chegar aos píncaros da visibilidade, meta ambicionada por qualquer parlamentar. Vale lembrar que ele foi eleito pelos pares para comandar a Comissão de Direitos Humanos. Até aí, tudo bem. Inaceitável é o uso (e abuso) de peroração discriminatória dentro de um organismo criado exatamente para defender os postulados da igualdade e da pluralidade.Resta observar que o "enviado dos céus" ultrapassou seus 15 minutos de fama. E parece querer mais, ampliando espaços midiáticos e sendo eleito como o bastião da resistência evangélica no Congresso Nacional. Multiplicará o rebanho e consolidará a imagem de "guerreiro do Espírito Santo"? Não há certeza. Mas a ambição desvairada pelo poder acabou turvando a visão do ator. O deputado pastor caiu na tentação de ultrapassar os limites do bom senso. Ao trazer Satanás para a mesa da política e identificá-lo com seus pares, abriu caminho para ser examinado sob a lupa ética. A imbricação de política e religião, na forma espetacularizada como o fez, e logo dentro da comissão que espelha direitos humanos, pode ser motivo para seu afastamento.Não é de hoje que objetos sagrados e profanos são embalados pelo celofane da política. No Brasil a amálgama tem sido rotineira, a partir das concessões na área de rádio e TV a grupos e igrejas. Os dois territórios se mesclam sob o olhar complacente de quem tem poder para evitá-lo.Até se admite que a concorrência entre católicos e pentecostais estimule os contendores a aprofundar as relações com o Estado, como se vê na recente proposta do deputado evangélico João Campos (PSDB-GO) que garante às entidades religiosas o poder de contestar a constitucionalidade de leis no Supremo Tribunal Federal. (Por que não estender o privilégio aos ritos afro-brasileiros?) Mas deslocar a religião para o palco central da política no molde feliciano é pregar abertamente a ilicitude dentro da própria Casa que faz as leis e deve dar exemplo de disciplina.Não se pretende defender postura apolítica de igrejas e credos. Seu papel missionário implica tomar partido, lutar por ideários e convicções, ações que inescapavelmente entram nos corredores do Parlamento. Podem até sugerir a eleição de perfis identificados com os valores da República. Constituem motivo de aplauso, igualmente, ações sociais pela elevação e promoção do ser humano, particularmente dos contingentes marginalizados. Essa é a visão abrangente da política que as igrejas podem perseguir. Outra coisa é política partidária, usar a religião como instrumento de negócios lucrativos, ímã para atrair fiéis e incluí-los nas siglas. A invasão religiosa do espaço público ameaça manchar o escopo republicano, apesar de sabermos que o ativismo eleitoreiro de certas igrejas acabará acentuando tal tendência. Urge dar um basta na construção da "igreja-Estado".Foram-se os tempos em que líderes religiosos coroavam e descoroavam reis e rainhas. O bom senso aconselha: srs. políticos, muito cuidado para não trombetearem dentro da politicagem o nome de Deus em vão. * JORNALISTA,  PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO. TWITTER: @GAUDTORQUATO