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Dificuldades em matemática

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Por Alexandre Barbosa
3 min de leitura

Este artigo é um alerta para pais, filhos, parentes, amigos e professores. Se alguém próximo de você - filho, filha, cônjuge, parente, amigo, amiga - tem grandes dificuldades com números, contas e matemática, provavelmente sofre de discalculia. Eles ou elas podem até dar certo na vida. Eu dei, mas sempre esgueirando-me dos malditos números. Na infância e adolescência era chamado de burro. As humilhações eram diárias. Fui empurrado, durante anos, por professores particulares de Matemática, para conseguir passar de ano. Nas matérias sem números me saia muito bem. Para ler e escrever era ótimo. Tinha notas boas. Ganhei até um concurso literário na escola. Aos 16 anos, passei a escrever, com um amigo, uma coluna sobre escotismo no Jornal do Brasil, então no auge de sua fama. Fui foca no Correio da Manhã e escrevi durante anos para o Jornal da Tarde e para a Gazeta Mercantil. Ganhei boa parte da vida escrevendo. A desgraça eram números, contas e fórmulas. Entendia a força centrífuga (se entrasse na curva, com o carro além de uma certa velocidade, a derrapagem era certa). Fiquei emocionado quando um colega contou-me que tensão superficial era o que permitia às lentes de contato flutuar dentro dos olhos, sem neles tocar. Não entendi isso na explicação do professor, por meio de fórmulas. Fui chamado de toupeira, aos berros, na frente da turma inteira. A humilhação foi enorme. Mesmo para discalcúlicos, conceitos complexos são fáceis de entender, se explicados com palavras. Entendê-los por meio de fórmulas, números e cálculos é tarefa inglória e quase sempre impossível. Entrar na faculdade foi um alívio. Estudando Sociologia livrei-me das contas. De Matemática, nada além de conversões de medidas e moedas e regra de três me serviu ao longo da vida. Ainda hoje, para fazer uma regra de três, preciso remontar o raciocínio passo a passo para conseguir saber que números tenho de multiplicar e quais tenho de dividir. Quase sempre erro. Vivi 50 e muitos anos nessa situação. As humilhações cessaram depois que terminei os estudos. Conseguia me esgueirar discretamente dos números. Evitava contas e situações que exigissem raciocínio matemático. Defendia-me eficazmente do sofrimento. Há poucos anos, almoçando com o jornalista Márcio Moreira Alves, ele ditou-me seu novo telefone, que anotei. Vendo o que eu havia escrito, Márcio disse-me: "Você anotou os números todos trocados." Insisti que os algarismos estavam nos lugares certos. Finalmente me convenci. Estava tudo trocado mesmo. Márcio me disse: "Alexandre, você é disléxico." O susto foi enorme. Com mais de 50 anos, Ph.D. em Ciência Política por uma das universidades mais prestigiosas dos EUA, uma tese de doutorado premiada e mais de 100 artigos publicados, fluente em três línguas, descobri que era disléxico. Não fazia sentido. Viva o Google. Fui lá pesquisar a dislexia. Achei o atalho certo. Meu problema era parecido, mas diferente. Sofro de discalculia: uma dislexia para tudo o que se relaciona a números e Matemática. Foi um alívio, exorcizei os demônios das ofensas e humilhações de professores. Eu não era idiota, burro ou toupeira. Eu tinha uma doença. Burros eles, que não sabiam. Mas burros com muito poder. Atualmente convivo bem com a discalculia. Professor, pró-reitor universitário e consultor empresarial, recentemente tive de fazer cálculos de custos empresariais e me atrapalhei todo. Um colega, vendo a minha confusão, tirou-me do aperto, mas não entendeu a minha dificuldade. Expliquei: para quem sofre de discalculia, letras e palavras se comportam muito bem. Números são crianças travessas que insistem em fazer as traquinagens que bem entendem, rindo e debochando de nós. O drama da discalculia é muito pior do que o da dislexia, porque a maior parte de nossa vida é conduzida por letras e palavras. Os números só são necessários para atividades menos frequentes. Assim, discalculia fica mais escondida e, por desconhecida, não é identificada nem tratada. Disléxicos também sofrem, mas sobre a dislexia já há mais conhecimento, o que propicia diagnósticos, controles e tratamentos. Discalcúlicos, porque a doença é desconhecida, são tratados como burros. Até hoje nunca sei se o troco que me dão está certo. No dia que recebi do banco um cartão de senhas, entrei em pânico ao ver todos aqueles números. Tive com a gerente uma áspera discussão: eu não iria usar o cartão. Perdi. Sofri para aprender. Decorei tudinho. Se algo mudar, volto à estaca zero e começo tudo de novo. Copiar sequências de dígitos para pagar uma conta via internet é uma operação que tenho de repetir várias vezes. Os números insistem em trocar de lugar. Outros algarismos travessos metem-se onde não foram chamados. Até usar um telefone de teclas é difícil. Com frequência tenho de "discar" várias vezes o número que quero, porque erro na tentativa. Quando percebo, paro no meio e recomeço. Quando vou até ao fim, espero a outra pessoa atender e peço desculpas pelo engano. E ligo de novo. Este artigo, no entanto, tomou-me menos de uma hora e meia para escrever e rever. Foi escrito por um impulso emocional: preciso contar a muitas pessoas que sofrem, são humilhadas, ofendidas e carregam culpas por não saber Matemática que elas não são burras, estúpidas, idiotas ou preguiçosas. São apenas doentes. Sofrem de discalculia. Podemos viver bem e até ter sucessos na vida, desde que eles não envolvam contas. Nos damos bem até com os gráficos e com os fenômenos da Física, da Química e da Matemática, desde que explicados com palavras, e não com fórmulas. Sobretudo, não nos peçam para calculá-los. Alexandre Barros, Ph.D. em Ciência Política pela University of Chicago, é pró-reitor do Centro Universitário Unieuro (Brasília) E-mail: alex@eaw.com.br