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Opinião|Diplomacia com pé no chão

Atualização:

Quando um dia Teddy Kollek, lendário prefeito de Jerusalém por 28 anos, foi confrontado por diplomatas que queriam discutir, mais uma vez, o conflito israelo-palestino, respondeu: "Senhores, poupem-me dos vossos sermões para que eu possa resolver os vossos problemas de saneamento". Com o tempo, a diplomacia desumanizou-se, encaneceu e burocratizou-se. Ainda que haja exceções (negociações comerciais multilaterais, por exemplo, poderão afetar milhões de produtores e empresários brasileiros), a política externa de vários países deixou de servir diretamente à população. A esse fenômeno se junta outro diametralmente oposto. Nunca a população esteve tão afoita por proximidade política e as suas exigências foram tão facilmente comunicáveis. Junho de 2013 está na memória de todos. Para responder a esse novo quadro emergiu a"paradiplomaci", as relações internacionais exercidas por governos subnacionais - Estados e cidades. Ao longo da última década, de forma muito discreta e por vezes até pouco sofisticada, todos os Estados brasileiros e mais de uma centena de municípios começaram a atuar no exterior. O objetivo não é competir com Brasília ou opinar sobre assuntos de política externa brasileira, mas gerir os temas que interessam diretamente à população (saúde, transportes, segurança, educação, sustentabilidade) com um braço no exterior. É como se os Estados e as cidades, locais onde, na verdade, a cidadania lateja, ocupassem espaços não cartografados pela diplomacia tradicional. Ao fazê-lo, humanizaram as relações internacionais. O Plano de Energia e Mudanças Climáticas de Minas Gerais foi elaborado com apoio técnico e financeiro da região francesa de Nord-Pas de Calais (o governo estadual poupou R$ 2 milhões), as Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro foram importadas de Medellín pelo governo de Sérgio Cabral, em Pernambuco milhares de alunos de escola pública fazem intercâmbio nos EUA, no Canadá, na Nova Zelândia e na Espanha. São ações internacionais com impacto local. Mas entre os entes subnacionais brasileiros, é São Paulo que tem mostrado mais musculatura internacional. Entre 2011 e 2014 o governo estadual recebeu 1.595 delegações estrangeiras (incluindo 22 chefes de Estado e de governo), assinou 234 acordos de cooperação internacional, manteve relações com 116 países e geriu aproximadamente uma centena de projetos e programas de cooperação internacional. Sua agência de investimentos, a Investe SP, atraiu R$ 20 bilhões, gerando 39 mil empregos. O Estado também bateu o recorde na contração de empréstimos internacionais - foram R$ 8,8 bilhões, investidos em infraestrutura e saúde. Em 2014 a nova política internacional paulista foi considerada pela revista The Economist "um dos melhores exemplos no mundo de criatividade e eficácia na gestão de políticas externas". Uma mancheia de cidades e Estados brasileiros participa também ativamente de debates sobre temas globais que afetam as cidades. O melhor exemplo é o envolvimento da prefeitura do Rio na preparação tanto da COP 21, a realizar-se em dezembro em Paris, quanto da Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III), que será organizada em Quito em outubro de 2016. A prefeitura também tem contribuído para a definição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Governos subnacionais, por intermédio de organizações e redes internacionais, têm sido, pela primeira vez, os grandes protagonistas na formatação de novas ideias e estratégias na área de sustentabilidade. Eduardo Paes é atualmente o presidente da C40, a mais vertebrada entre as cerca de cem redes de cidades, mantendo interlocução próxima com o secretário-geral da ONU e com os prefeitos das maiores cidades do planeta. Sucedeu ao ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg, que atualmente atua como enviado especial da ONU para cidades e mudanças climáticas. Lá fora, a voz do Rio de Janeiro tem sido mais audível que a do governo brasileiro na preparação desses grandes eventos internacionais. Atentos a esta nova tendência global, os governos da França, dos EUA, da Alemanha, da China, do México ou do Canadá têm ativamente fomentado a internacionalização de suas cidades e seus Estados. Novas estratégias diplomáticas nacionais que contemplem o papel das cidades e novos órgãos de coordenação vertical têm brotado nesses países. Mas Brasília mantém-se entorpecida. Ainda que a estrutura do governo federal disponha de órgãos que também têm como missão apoiar a internacionalização dos entes subnacionais (alguns estabelecidos ainda no tempo de Fernando Henrique Cardoso), parte considerável do governo brasileiro desconhece as atividades internacionais das seus Estados e cidades. No Itamaraty ainda é possível encontrar quem, de costas voltadas para as novas práticas diplomáticas, rejeite liminarmente a paradiplomacia. Mas o futuro não tem de ser soturno. Foi afortunada a recente escolha de Sérgio França Danese - embaixador de pensamento digital e com experiência prática no apoio à paradiplomacia brasileira - para secretário-geral do Itamaraty. Empurrada por prefeituras e governos estaduais, a Presidência da República está também nas vésperas de adotar seu primeiro decreto sobre cooperação internacional descentralizada. A paradiplomacia e a diplomacia não são concorrentes, mas complementares. Constitucionalmente, nenhuma pode ocupar o terreno da outra. A diplomacia brasileira só terá a ganhar se olhar para os governos subnacionais como parceiros. Ainda estes dias ouvi um colega na universidade dizer que "as cidades não devem ser vistas meramente como nacos de território urbanizado, mas como o espaço onde fluxos globais - de capitais, informação, pessoas, bens e serviços - se cruzam e cristalizam." Ainda bem que no Brasil são cada vez mais os que concordam.Senior Research Fellow na Universidade Harvard, membro do Conselho de Competitividade do Fórum Econômico Mundial, pós-doutorado pela Universidade de Columbia

Opinião por Rodrigo Alvares