Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Diplomacia e democracia

Maduro na presidência do Mercosul é questão plena de significado e, mais, de consequências

Atualização:

A diplomacia passa frequentemente ao largo dos interesses dos cidadãos brasileiros. Em qualquer disputa político-eleitoral, questões externas não fazem parte da agenda política. Logo, esse importante setor da vida nacional não recebe a atenção devida. Mas o novo governo, de Michel Temer, graças à atuação de seu ministro de Relações Exteriores, senador José Serra, está tomando importantes iniciativas que têm impacto direto no terreno da política nacional.

O governo petista havia tornado essa área um instrumento de suas posições partidárias mais retrógradas. O PT considerou a diplomacia uma prolongação de sua doutrina bolivariana, alinhando o País às posições socialistas/comunistas do século 20. A democracia perdeu o seu valor universal, vindo a ser manipulada segundo as conveniências particularistas do momento.

O governo Temer está recolocando a questão em sua verdadeira dimensão, rompendo decisivamente com essa orientação ideológica. Busca o bem da Nação, e não o contentamento ideológico de um partido. Diplomacia é instrumento de um país, não de um partido.

Exemplo disso é o tratamento que o ministro Serra está dando ao governo Nicolás Maduro, tomando iniciativas para impedi-lo de assumir a presidência rotativa do Mercosul. Tal orientação se situa em linha de continuidade com sua defesa dos opositores presos e de várias mensagens sobre os procedimentos nada democráticos do venezuelano. Uma linha demarcatória está sendo desenhada.

Esse assunto é particularmente importante porque diz respeito ao que este governo e o anterior consideram como democracia. A acepção de um e outro é completamente distinta.

Para os governos petistas, os governos bolivarianos da Venezuela seriam exemplos de democracia. O ex-presidente Lula chegou a dizer que havia excesso de democracia sob o governo Hugo Chávez. A presidente Dilma foi conivente com todas as violações da liberdade cometidas, chegando a suspender o Paraguai do Mercosul por discordar da “democracia” chavista.

O que estava e está em curso na Venezuela?

Pode-se, assim, caracterizar a linha mestra do bolivarianismo: a subversão da democracia por meios democráticos.

Na tradição socialista/comunista do século 20, a tomada do poder foi sempre defendida como um ato revolucionário mediante o uso da força e da violência. Daí nascem símbolos como a tomada do Palácio de Inverno, na Rússia. E assim foi em Cuba, com seus “revolucionários” em uniforme militar tomando pela violência os símbolos do poder.

Revolução e violência estavam umbilicalmente ligadas. O uso da violência era o ato inaugural dessa forma de fazer política, que se prolongava, depois, na dominação violenta de seus cidadãos, tornados meros servos do Estado. A liberdade era extinta desde esse momento inicial.

A criatividade da doutrina bolivariana consistiu numa inovação, que se tornaria corriqueira na esquerda latino-americana: o ato violento de tomada do poder foi substituído por um processo eleitoral que seria o momento inicial da extinção progressiva das liberdades. A democracia seria devorada aos pouquinhos, pela conquista da opinião pública. É como se a liberdade e a democracia devessem desaparecer sem que os cidadãos se dessem conta do processo.

A esquerda dissociou, dessa maneira, a revolução da violência, com o intuito de melhor conseguir a adesão da sociedade. Aparentemente a democracia estaria sendo respeitada, quando, na verdade, estava sendo completamente subvertida.

Note-se a “evolução” política do bolivarianismo na Venezuela, imitada em outros países. O governo Chávez foi, progressivamente, sufocando a imprensa livre e os meios de comunicação. Uma vez tendo conquistado o poder, sua tarefa consistia em manipular a opinião pública. Quanto mais silenciosa, melhor para sua dominação totalitária.

Ato contínuo, o controle do Legislativo, transformado em mera correia de transmissão de suas ordens, sem iniciativa própria alguma. A aparência democrática permanecia, pois a instituição legislativa continuava a existir, embora completamente evacuada de sua função constitucional. Chávez passou a legislar por decreto, instituindo-se em Poder Legislativo, além, evidentemente, de manter suas prerrogativas executivas.

A etapa seguinte, o amordaçamento completo do Poder Judiciário, de tal maneira que se tornasse completamente subserviente a ele. Embora tenha deixado de ser um Poder independente, sua mera “existência” servia de aparência de constitucionalidade, como se prender opositores e eliminar manifestantes fossem atos “legais”. Sempre poderia aduzir que a lei fora respeitada, sem precisar que ele próprio se havia tornado a fonte e o braço da própria lei.

Durante todo esse processo, o Exército virou uma espécie de guarda pretoriana a serviço de Chávez. Perdeu totalmente a sua missão constitucional, vindo a ser mero instrumento de operação e consolidação do poder bolivariano. Seu lema “socialismo o muerte” bem mostra a sua deformação. Na verdade, tal bandeira acabaria por significar, de fato, socialismo para os donos do poder e morte para os venezuelanos.

A violência revolucionária, contudo, não desapareceu, apenas ganhou novos contornos, com a repressão aos cidadãos. Milícias foram criadas e armadas com o único intuito de aterrorizar as pessoas e calar os opositores. São meros instrumentos da política bolivariana. A liberdade, sua maior vítima.

As instituições democráticas são, então, progressivamente desmontadas, destruídas. Enquanto isso, no Brasil, os petistas e afins aplaudiam esse processo, dizendo – pasmem! – defender a democracia. Até um mínimo de pudor desapareceu.

Logo, quando presenciamos as escaramuças diplomáticas em torno da polêmica relativa a se Maduro deve ou não assumir a presidência rotativa do Mercosul, devemos ter presente que estamos diante de uma questão plena de significado e, sobretudo, de consequências.

*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL:DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR