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Opinião|Donald Trump – enfim, a vitória do ‘outsider'

Até que ponto o roteiro do sistema político dos EUA funcionará com o presidente eleito?

Atualização:

A eleição de Donald Trump contrariou, mais que expectativas, a certeza sobre a vitória de Hillary Clinton, que havia ficado evidenciada nas pesquisas, na aparente solidez do pensamento politicamente correto, nos temores das minorias, na estupefação de lideranças das principais nações, na perplexidade dos comentaristas políticos. A vitória de Trump tem sido majoritariamente descrita como a antessala do desastre, a necessidade de “absorver o impossível”, o “anúncio do caos iminente”, a “tragédia americana”. Sem dúvida, há fortes razões para preocupações, incertezas, medo, insegurança e até mesmo angústias. Trump fez uma campanha agressiva e até irresponsável, prometendo medidas que não poderá cumprir; apresentando soluções simplórias e irrealistas para problemas complexos; dando a entender que vai se intrometer na política externa, na economia e nas ações sociais do governo como um rinoceronte numa loja de cristais. Com esse comportamento, Trump plantou aqueles sentimentos durante a campanha. Eles se apresentam, agora, para a colheita, junto com os frutos da vitória. Trump tornou-se, então, um enigma. Cabe, então, fazer algumas perguntas sobre aspectos de sua campanha que causaram tantas incertezas.  Estas são perguntas que usualmente não são feitas em eleições presidenciais nos EUA. Há um amplo consenso político sobre a presidência e o presidente que se encarrega de acomodar os traços mais idiossincráticos do novo presidente dentro de moldes socialmente legitimados. Cada um é diferente de todos os outros e cada um é semelhante a todos. A surpresa e a reação de espanto com a vitória de Trump se devem ao fato de que ele até agora contrariou aquela equação: ele é diferente de todos e não é semelhante a nenhum. 1) Como caracterizar Trump politicamente? Os termos usuais para caracterizar um político são inadequados para descrever Trump. Dizer que é um republicano não basta. Dizer que é um empresário é insuficiente. Dizer que é um conservador, um reacionário, não corresponde a um político tão agressivo e populista, que fez sua carreira sem hesitar em correr riscos elevados. Dizer que é um demagogo não o torna muito diferente de Hillary. Na realidade, Trump é um outsider. É um estranho ao “clube” político que passou a integrar. Nunca disputou eleições, nunca aprendeu as regras de comportamento que a participação na vida partidária, parlamentar, executiva sujeita seus membros. Em consequência, não foi socializado naquele amplo consenso, em grande parte tácito, que define o que se deve ou não se deve fazer; o que se pode e não se pode fazer na dinâmica da política. 2) Por que Trump fez uma campanha tão ameaçadora? Sendo um outsider, seu desafio era forçar sua entrada no “clube”. Sendo um bilionário, podia bancar sua campanha, sem prestar contas a ninguém. Sendo um vendedor de enorme sucesso, sabia que precisava oferecer aos compradores potenciais (eleitores) o que eles queriam sem fazer concessões ao partido, à mídia e ao politicamente correto. Sendo um outsider, foi subestimado pelo establishment. Outsiders na política americana sempre ocupavam a terceira candidatura, e invariavelmente perdiam. Nesta eleição, entretanto, o outsider concorria para ser o candidato do partido republicano. Subestimado em sua vaidade, orgulho e qualidades pelo partido, não lhe restou outra alternativa senão aceitar a aposta. Sua campanha foi um repto àqueles que o subestimaram. 3) Como conseguiu transitar da periferia do sistema político para o seu núcleo? Conseguiu pela oportunidade que o sistema de prévias lhe dava de consolidar apoios e, vencendo-as, ocupar o espaço de líder de seu partido nesta eleição. Em outras palavras, conseguiu, usando as prévias, passar de outsider para insider, mas atenção: sem fazer concessões no seu comportamento, ideias, discurso, debates e estratégia. Ao vencer, Trump logrou se transformar num insider com a independência de um outsider rico. 4) Como deverá se portar como presidente eleito, não mais como candidato? De agora até a posse, duas pressões convergentes vão se verificar: a) pressão do sistema político para “converter” Trump, incorporá-lo ao grande consenso (“clube”), o que deverá aparar suas arestas mais cortantes; e b) pressão de Trump sobre o sistema político para revestir-se de legitimidade, para conquistar alguma independência das expectativas dos seus eleitores, para poder incorporar a imagem de presidente de todos os americanos, e comprovar, por seu comportamento e palavra, que está à altura da “grandeza” do cargo. Se, no primeiro caso, são os titulares dos papéis centrais do sistema político que tomam a iniciativa de se aproximar dele, no segundo é Trump que, ao responder favoravelmente àquela iniciativa, é premiado com o reconhecimento de sua autoridade, com o respeito devido a um superior e com a aceitação dos eleitores que votaram em Hillary. Este processo de cooptação consentida já está em curso desde o momento em que sua vitória foi tornada pública. Concluída esta fase, o candidato rebelde e agressivo deverá se apresentar mais palatável, equilibrado, moderado em plena caminhada rumo ao próximo ato: a escolha da sua equipe de governo, seu discurso de posse e sua entronização como estadista. O sistema político americano sempre foi capaz de cooptar até mesmo os mais rebeldes e radicais presidentes eleitos para a adesão aos princípios e regras do exercício do poder, transformando os imprevisíveis em previsíveis e, quando a necessidade assim exigiu, usando do poder legal para removê-los do poder. A grande interrogação trazida por esta eleição é até que ponto este roteiro funcionará com um outsider que por força própria tornou-se chefe dos insiders.

*Professor de ciência política, ex-reitor da UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton, é criador e diretor de Política para Políticos (www.politicaparapoliticos.com.br)

Opinião por Francisco Ferraz