03 de fevereiro de 2013 | 02h05
Eis mais uma faceta do Brasil. A imagem de uma gangorra, para retratar o estado social, é mais que apropriada. Altos e baixos revezam-se ininterruptamente. Entre o sol nascente e o poente, o choro e a tristeza se recolhem para dar lugar à fruição e à catarse.
Há quem discorde dessa abordagem por observar que é natural, no cotidiano de uma nação, a convivência dos contrários, a imbricação de eventos felizes e infelizes. Alegria e dor se alternam ininterruptamente. Ademais, argumenta-se que, quando se trata de catástrofes, fatores incontroláveis precisam ser considerados. Eis o ponto central da questão que aqui se levanta. Causas imprevisíveis impulsionam eventos de alto impacto, como desastres naturais, os de origem na natureza e que se processam na evolução ou modificação de estruturas climáticas na crosta terrestre. Incluem-se nessa esfera vulcões, furacões, secas intensas e terremotos. Sabe-se que tais fenômenos podem ser também deflagrados pela ação do homem no meio ambiente, o que abre a percepção de haver algum grau de controle, mínimo que seja, sobre ocorrências classificadas como imponderáveis.
O fato é que a corrente de acidentes/incidentes em nosso território costuma ancorar-se na práxis de gestores públicos, descrita numa coleção de preceitos erráticos: displicência, desleixo, preguiça, acomodação, protelação, compadrismo, inação. São traços de uma cultura política assentada no patrimonialismo, que ao longo de nossa História frutificou nos galhos do fisiologismo, do mandonismo, do grupismo, do caciquismo, do coronelismo e do nepotismo, entre outros.
A faísca que provocou a tragédia em Santa Maria saiu do arsenal da administração pública e é chamada de falta de controle e fiscalização. O olho mais atento do gestor público teria coibido um espetáculo festivo para mais de mil pessoas num espaço para comportar menos de 700. E pior: com apenas uma pequena porta de entrada e saída.
A pólvora da gestão irresponsável - sob a forma da leniência - acumula-se nos cantos e recantos do País, queimando florestas, corroendo biomas, desmanchando escarpas de montanhas, destruindo morros, derrubando favelas e, ultimamente, expandindo o número de vítimas de morte dos acontecimentos. Não há exagero em afirmar que a falta de zelo pontifica em todos os quadrantes do território.
Examine-se, neste exato momento, a condição dos estabelecimentos públicos - escolas, hospitais, maternidades, creches, asilos, cárceres, praças - em qualquer Estado brasileiro e se verá feia radiografia: falta de higiene, prédios sujos, falta de equipamentos ou quebrados, ausência de profissionais em horários de trabalho, corredores superlotados, ecos do desespero. Jogando a argamassa das mazelas que corroem a sociedade na panela das transformações que ocorrem no bojo da modernidade - expansão econômica, revolução tecnológica, globalização de costumes e rompimento com valores tradicionais -, chega-se a um conceito que tem prosperado em nossos trópicos: a anomia social.
Entenda-se por anomia a conduta desviante, a incapacidade da sociedade de atingir suas metas culturais por causa da insuficiência de meios que as instituições lhe proporcionam. Desenvolve-se anomia quando os indivíduos se sentem motivados a violar as normas para poderem atingir seus fins, suas metas. Quanto maior for a incapacidade do poder institucional de fazer os cidadãos se realizarem e alcançarem felicidade, utilizando as normas vigentes, maior a anomia social. Engrossam a cadeia anômica párias, viciados, alcoólatras, delinquentes e os que se refugiam nos escombros da resignação e desesperança, os descrentes. Mais uma ênfase: a anomia leva em conta o sistema normativo-legal de um país.
Neste ponto, voltemos ao dia a dia nacional. A transgressão que se observa no comportamento social tem conexão com os desvios legais, éticos e morais que povoam o hábitat de governantes e representantes. Além disso, dispomos de um cipoal legislativo extremamente volumoso e difuso. Resultado: o que é proibido fazer acaba transferido para o departamento de coisas permitidas. Faixas de pedestres invadidas por ciclistas ou vice-versa? Coisa usual. Da floresta legislativa de mais de 3,7 milhões de leis, milhares se perdem nos esconderijos. Ao final de cada lei se lê o dispositivo: "Revogam-se as disposições em contrário". Quem sabe o que revoga o quê? Quando não se cumpre a lei, abre-se uma cratera entre as metas do indivíduo e as normas que o acolhem. A anomia nasce nesse berço.
Por último, a piada da criação do mundo: por que, Senhor Deus, o Brasil ganhou tantas belezas, tão belas condições naturais, enquanto nações como o Japão, uma pequena tira de terra, foram agraciadas com terremotos e maremotos? A pergunta feita ao Criador do Céu e da Terra seria hoje fora de propósito.
* JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO
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