Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Economia e vida, uma questão ética

Exclusivo para assinantes
Por Dom Odilo P. Scherer
3 min de leitura

A Campanha da Fraternidade é promovida todos os anos no Brasil pela Igreja Católica durante a Quaresma, período de 40 dias de preparação para a Páscoa. Neste ano, porém, ela é realizada de forma ecumênica, com a participação de cinco Igrejas cristãs reunidas no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic). O tema - economia e vida - aborda a questão crucial das atividades econômicas, pelas quais passa a construção da cultura da solidariedade. Não é intenção nem competência da Campanha da Fraternidade debater teorias e técnicas de gestão econômica; ela propõe uma reflexão sobre aquilo que move ou que deveria mover a economia: o serviço à vida. A questão é atual e não interessa apenas aos teóricos de sistemas econômicos e seus estudiosos, nem somente aos gestores das políticas econômicas ou administrativas. Toda pessoa é um agente econômico, quando trabalha, produz, consome, investe, ganha, compra, vende, gasta. A questão de fundo, posta pela Campanha da Fraternidade, é ética e pode ser traduzida nesta pergunta: a economia está a serviço da vida ou da morte? Em 2009 Bento XVI levantava essa mesma questão na encíclica Caritas in Veritate (A Caridade na Verdade), refletindo sobre o desenvolvimento dos povos no contexto do mundo atual, sobretudo tendo em vista a recente crise econômica e financeira. Também Paulo VI, na famosa carta encíclica Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos), já havia insistido em que o desenvolvimento, para ser verdadeiro, deve ser integral e precisa beneficiar todas as pessoas e a pessoa inteira, em todas as suas dimensões. Mais de 40 anos depois, quando a humanidade alcançou um alto grau de globalização, Bento XVI constata que estamos longe de alcançar esse ideal; apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, ainda existem camadas sociais e povos inteiros vivendo na miséria, atingidos pela fome, por doenças endêmicas e pelo analfabetismo. Hoje o número dos deserdados do progresso é bem maior do que nos anos 1960. Aquilo que o papa observa também nós podemos constatar: a globalização dos mercados, dos sistemas financeiros e das comunicações sociais aproxima-nos cada vez mais, mas não nos faz mais irmãos (cf n.19). Os efeitos de morte da economia são constatáveis na permanência da miséria e da fome de muita gente, na dívida externa impagável de países pobres, no uso irresponsável dos recursos naturais a ponto de causar a destruição da natureza. Por que acontece isso? Teoricamente, todos podem ter acesso às mesmas oportunidades e tecnologias; todos estão envolvidos pela mesma onda globalizante, mas alguns permanecem na miséria e outros se projetam para posições privilegiadas, inatingíveis para o comum dos mortais. Por qual motivo o progresso tecnológico não realiza, por si só, o bem comum de todos? Seriam as profundas desigualdades sociais e econômicas reinantes no mundo uma fatalidade insuperável? Deveríamos tranquilizar-nos, concluindo que se trata de marca indelével da condição humana, que nunca será cancelada, sendo, por isso, inútil lutar por uma ordem econômica mais justa e uma sociedade mais fraterna e solidária? Se aceitássemos tal hipótese, também estaríamos negando, ipso facto, a dignidade básica comum de todos os seres humanos e abriríamos uma brecha cômoda para justificar todas as formas de discriminação. A hipótese da desigualdade social e econômica insuperável não pode ser aceita. Uma sociedade de classes estratificadas e impermeáveis seria aberrante, um verdadeiro choque para a consciência. Da mesma forma, é inaceitável a hipótese de uma sociedade igualitária imposta pela força, mediante o cerceamento da liberdade pessoal. Experiências históricas recentes mostraram que o igualitarismo forçado fere a dignidade humana, impõe a todos o paternalismo de Estado e se torna causa de apatia geral, inibindo o dinamismo criativo das pessoas. Mas, certamente, existe a possibilidade de desenvolver relações econômicas entre pessoas, sociedades e países que se orientem pelo respeito à vida e à dignidade humana e por critérios de verdadeira justiça e solidariedade, bem como pelo respeito à natureza, de cujos recursos depende a maioria das iniciativas econômicas. A Campanha da Fraternidade lembra um princípio que nunca deveria ser esquecido: a pessoa e a promoção do bem comum têm a primazia sobre o lucro e o acúmulo individualista e devem, por isso, estar no centro de toda atividade econômica. Vale uma verdadeira inversão de posições: não é a pessoa que está a serviço da economia, mas, ao contrário, a economia deve estar a serviço da pessoa. O ser humano é o valor maior e sempre deve ocupar o primeiro lugar. O dinheiro e o lucro são necessários e, em si, não são um mal, mas o uso que deles se faz pode ser distorcido e mau. O papa Bento XVI, na encíclica já citada acima, recorda-nos que o lucro não deve ser o objetivo supremo e último da atividade econômica, mas um meio orientado para um fim, isto é, para a promoção do bem comum. O lucro visado como fim exclusivo pode destruir a riqueza e criar a pobreza (cf n. 21). Bastaria aqui analisar a origem e os efeitos da recente crise financeira e econômica mundial. Uma economia a serviço da vida, portanto, deverá integrar a ética da solidariedade e da responsabilidade social: não pode ser bom, do ponto de vista ético, algo que seja vantajoso para mim, mas traga prejuízo aos outros. Pensar, planejar e agir solidariamente. Os "outros", neste caso, são todos os atuais ocupantes do nosso planeta, mas também as gerações que ainda virão depois de nós; ficaria mal deixar-lhes apenas os ossos do banquete da vida... Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo