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Opinião|Efeitos colaterais da Justiça veloz

Outros ex-presidentes ganharam favores iguais ou maiores que os de Lula. Algum foi preso?

Atualização:

“Certamente o impeachment da Dilma foi votado por gente de má qualidade, sempre com as honrosas exceções, mas por gente de má categoria como parlamentar. E tendo em vista um interesse principal: a crença de que a (Operação) Lava Jato iria morrer” (Boris Fausto, em entrevista a Guilherme Azevedo, do UOL, em 27 de janeiro de 2018).

“(Com a confirmação da condenação de Lula pelo TRF-4) cria-se um vácuo no processo eleitoral que pode até comprometer a legitimidade do pleito. Fora Lula, agora sub judice, não há até o momento nenhuma força política capaz de arrebanhar o público” (Roberto Romano, em entrevista ao mesmo Guilherme Azevedo, do UOL, em 24 de janeiro de 2018).

O historiador Boris Fausto e o filósofo Roberto Romano não são petistas nem lulistas. Não obstante, ambos, a exemplo de outros intelectuais que conseguem manter um mínimo de equilíbrio analítico e não embarcaram em fanfarras palanqueiras ou idolatrias ridículas, identificam na cena política motivos para apreensão. Boris Fausto, na mesma entrevista, diz que “não vivemos numa democracia plena nem consolidada”. Roberto Romano, referindo-se ao julgamento de Lula pelo TRF-4 em 24 de janeiro, considerou a decisão “impensada”, por não ter abarcado “a complexidade da situação política que vivemos” – embora ele seja o primeiro a dizer que não se poderia exigir dos desembargadores uma “decisão populista”.

O quadro é difícil. A condenação de Lula não constitui meramente uma vitória da ética contra a corrupção, como alguns alardeiam em tom festivo. Quem tem compromisso com a democracia e com a ética, mesmo que considere justa ou legalmente sustentada a pena imposta ao ex-presidente, não deixa de levar em conta a vulnerabilidade da situação. Sem exagero algum, não é de descartar que a legitimidade das próximas eleições venha a ser posta em questão. (A propósito, sem Lula na cédula, o Datafolha apontou, em pesquisa publicada ontem, que o índice de votos em branco e nulos salta para 31%, o maior já observado em toda a história do instituto.)

O que vem agora? As alegadas inconsistências ou vícios formais, processuais (e mesmo materiais, em menor grau), do veredicto serão discutidos nas devidas instâncias da Justiça e não cabe a mim, reles bacharel, emitir palpites que vão além da minha competência profissional. O que me cabe – na condição de pesquisador da comunicação social, particularmente interessado na qualidade dos debates próprios da esfera pública – é anotar que ganha corpo a hipótese de que o abismo entre o Poder Judiciário e o povo se esteja aprofundando. Pesquisas empíricas terão de medir melhor esse desgaste, esse esgarçamento da imagem da Justiça no episódio específico, mas a hipótese precisa ser levada a sério desde já.

É possível considerar que uma desconfiança mais densa de setores da sociedade em relação à Justiça teve seu marco inicial no impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e se agravou agora, com o julgamento no TRF-4. A razão da desconfiança é fácil de vislumbrar: o crime pelo qual a ex-presidente foi cassada nunca foi claro para os comuns do povo, as tais “pedaladas fiscais” consistiam em filigranas contábeis ultracomplexas, diante das quais a perda do cargo parecia desmesuradamente dura. Do outro lado, pesam sobre Michel Temer suspeitas muito mais concretas – até mesmo na própria Polícia Federal, que vem de interrogá-lo sobre irregularidades envolvendo portos e propinas – e nada, absolutamente nada acontece com ele. Desse contraste, a impressão de que há dois pesos e duas medidas para julgar presidentes da República resulta mais forte – e essa impressão, note bem o leitor, não é um problema do PT, do MDB, desse ou daquele candidato, mas um problema da saúde institucional da democracia brasileira, pois tange a credibilidade e a legitimidade do Estado de Direito.

Um efeito análogo se deu agora com o TRF-4. Embora o artigo 317 do Código Penal, invocado na sentença de primeira instância, contenha, na sua tipificação penal, a aceitação de “promessa” de “vantagem indevida”, é muito difícil para o leigo entender de que modo essa “promessa”, no caso do famigerado triplex, se traduziu na vida prática. Lula não é dono do apartamento. Ninguém de sua família é. Nenhum deles usou o imóvel, nunca. Nesse contexto, o senso comum não consegue compreender por que uma pena tão pesada – que inclui prisão e perda do direito de se candidatar – para um crime que jamais se consumou no plano dos fatos.

É verdade que, com o sítio de Atibaia, a coisa é diferente. Naquela propriedade campestre, naquela dacha tropical, as benfeitorias foram comprovadamente realizadas por empreiteiras envolvidas até o pescoço com a corrupção da Petrobrás, e ali, naquele imóvel, Lula se instalou confortavelmente, mesmo sem ter a escritura em seu nome. Acontece que no dia 24 de janeiro Lula foi julgado não pelo sítio de Atibaia, mas pelo caso do triplex, e, quanto ao caso do triplex, não fica óbvia a razão de um castigo tão severo para um delito tão abstrato, tão restrito ao campo das intenções.

Outros ex-presidentes ganharam favores iguais ou maiores do que Lula (quase) ganhou no caso do triplex de veraneio (não estamos tratando aqui de Atibaia), ao que o povo se pergunta: algum desses ex-presidentes foi parar na cadeia? O Judiciário deve, sim, aplicar o rigor da lei, mas para todos. Sem isso, e sem que isso seja claríssimo, a desconfiança de que há dois pesos e duas medidas se acentua – e os que queriam votar em Lula se sentirão tungados em seus direitos de eleitores.

Por fim, registre-se que o Judiciário, no caso do triplex, foi especialmente ágil. O Brasil é instado a inverter o velho ditado e passar a dizer que “a Justiça se apressa, mas não falha”. Não falha mesmo? Se se alastrar a impressão de que a toga tem um lado, o que será posto em risco são pilares mais essenciais do que a candidatura de um ou de outro.

*Jornalista, é professor da ECA-USP