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Em defesa do voto obrigatório

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Por Isabel Lustosa
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No último dia 9 de junho, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou projeto de lei do senador Marco Maciel (DEM-PE) que altera o Código Eleitoral, reduzindo de nove para duas as penalidades impostas aos eleitores que não comparecem às urnas nos dias de votação. Disse o senador que sua intenção é apenas tornar menos rigorosas as punições aos faltosos. Mas os favoráveis ao fim da obrigatoriedade do voto comemoram a decisão como um primeiro passo nesse caminho. Tema tão relevante não deveria passar sem uma ampla e profunda discussão na sociedade civil. Discussão que, aliás, faz parte da história do sistema eleitoral brasileiro. Os defensores do voto facultativo sempre se escudaram, e ainda hoje é assim, no argumento de que o cidadão não pode ser obrigado a votar porque ninguém pode ser obrigado a exercer a cidadania.Será? Creio que não e cito dois exemplos.No Rio de Janeiro do começo do século 20, a chamada campanha da vacina obrigatória enfrentou forte resistência da população. Oposição liderada por políticos positivistas sob o argumento de que o cidadão tinha total direito sobre seu corpo e, portanto, ninguém podia ser obrigado a se deixar inocular. Oswaldo Cruz, idealizador e coordenador do programa, contra-argumentaria: quem não se quer vacinar poderá ser infectado. E, ao sê-lo, transmitirá a doença a quem não deseja ser doente. Se colidir com o bem comum, aí, sim, a liberdade individual se converte em tirania. A campanha da vacina obrigatória é hoje um marco na história da saúde pública no Brasil.Exemplo mais recente diz respeito à preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural dos brasileiro. Esta só se tornou viável depois que, com a instituição da Lei de Tombamento em 1937, concebida por Mário de Andrade e Rodrigo de Mello Franco, medidas punitivas foram adotadas contra os que destruíssem ou descaracterizassem bens tombados. Aliás, durante o malfadado governo Collor, e bem dentro do espírito neoliberal que começava a se impor no contexto brasileiro, surgiu a proposta de fazer a preservação dos bens históricos ser transformada em matéria facultativa. Ou seja, dever-se-ia deixar ao critério do proprietário de um imóvel de valor histórico preservá-lo, demoli-lo ou descaracterizá-lo.Com a mesma candura com que naquele tempo se acreditava que a mão livre do mercado acabaria por fazer o pão chegar à mesa dos famintos (mesmo que isso demorasse um pouco e algumas gerações fossem sacrificadas), acreditava-se que a mão livre do mercado imobiliário salvaria o que fosse para ser salvo da destruição e destruiria o que fosse necessário para o crescimento do mesmo mercado. Tal política não prosperou, mas talvez tenha influído no fato de que, somente agora, no último dia 10 de junho, tenham sido estabelecidos os critérios para a aplicação das multas àqueles que causarem danos a bens tombados pela União. Até então só restava ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o recurso às ações judiciais. Esta conquista demonstra que em tal matéria se optou pela ideia de que há uma razão de Estado pela qual o bem comum se sobrepõe ao bem individual. E é este o princípio que está na origem da própria ideia de República.Ideia que também orientou a adoção do voto obrigatório a partir da reforma da Lei Eleitoral de 1932. Cristina Buarque, em tese defendida no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), analisou as razões por que o projeto de Código Eleitoral apresentado por Assis Brasil durante a Constituinte de 1891 só foi adotado quase 40 anos depois. Nas quatro primeiras décadas da República, o pragmatismo dos barões do café, que dominavam a economia e, com ela, a política brasileira, preferiu o "jeitinho brasileiro". No contexto da "política dos governadores", optou-se por um arremedo de democracia que, sustentada no voto aberto, possibilitava o controle total dos poderosos locais sobre o eleitorado. O voto a bico de pena, por se prestar facilmente à adulteração, completava a farsa. Só após a Revolução de 1930, com o objetivo de moralizar e tornar realmente democrático o processo eleitoral, foi adotada a fórmula proposta por Assis Brasil. De um lado, o voto secreto, protegendo a liberdade de escolha do eleitor; de outro, o voto obrigatório, garantindo, com o pleno comparecimento da população às urnas, a representação da vontade da maioria.Em estudo sobre o tema, disponível na internet, a cientista política Luzia Herrmann demonstra que, se adotado no Brasil o voto facultativo, isso acarretaria uma queda de 30% a 35% de comparecimento do eleitorado às urnas. Votariam os mais mobilizados, os mais informados, os com interesses bem definidos. É o que tem acontecido na Venezuela, onde a reforma eleitoral de 1993 não eliminou o voto obrigatório, mas sim as penalidades para os não-votantes.As eleições ocorrem no Brasil de dois em dois anos. Em muitos casos, quando não há segundo turno, o cidadão só tem de sair de casa uma única vez, num domingo, para se dirigir a lugar, em geral, perto de sua residência e votar. Não é sacrifício demasiado e a lei faculta o voto aos que, por serem muito jovens ou analfabetos, podem não ter certeza do que querem, ou aos que, velhos ou doentes, não tenham condições físicas de comparecer às urnas.O voto deve ser obrigatório pela mesma razão que a educação deve ser obrigatória. Os que não votam devem ser punidos pela mesma razão que devem ser punidos os que deixam as crianças sem escola, os que liquidam o patrimônio histórico do País, os que dirigem embriagados, etc. Votar também é parte da educação de um povo: o dever de escolher seus representantes e dirigentes o obriga a refletir periodicamente sobre seu destino.DOUTORA EM CIÊNCIA POLÍTICA PELO IUPERJ, É HISTORIADORA DA CASA DE RUI BARBOSA NO RIO DE JANEIRO