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Enriquecimento ilícito

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Por Redação
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A Comissão de Reforma do Código Penal do Senado comunicou que concluirá seu trabalho em duas ou três semanas, dentro do prazo estabelecido em 2011. Encarregada de modernizar o Código Penal de 1940, editado pela ditadura varguista, a Comissão aumentou as punições para determinados delitos e expandiu o rol de crimes tipificados pela legislação. Entre os novos tipos de delito, um dos mais polêmicos é o que classifica como crime o enriquecimento incompatível com a renda declarada por políticos, magistrados e demais servidores públicos. Pela proposta da Comissão, os agentes públicos com "patrimônio a descoberto" poderão ser punidos com pena de cinco anos de prisão e perda dos bens obtidos de forma ilícita. Se o agente público transferir a posse de bens e valores a terceiros, para camuflar a acumulação ilegal de riqueza, a pena pode ser aumentada em até dois terços. Apesar de o Código Penal conter vários dispositivos contra a corrupção na administração pública, os membros da Comissão alegam que eles não são suficientes. Como a máquina governamental aumentou e se diversificou, o crime de enriquecimento ilegal no serviço público exigiria uma tipificação mais abrangente do que a prevista pela legislação em vigor, diz o presidente da comissão, ministro Gilson Dipp. "É um momento histórico na luta contra a corrupção no Brasil. Criminalizamos a conduta do funcionário público que enriquece sem que se saiba como, que entra pobre e sai rico. Agora temos um tipo penal esperando por ele", afirma o relator da comissão, Luís Carlos Gonçalves. Pela tipificação proposta, bastará aos órgãos de investigação provar que um político, magistrado ou servidor público acumulou patrimônio ou usufrui de bens incompatíveis com a renda declarada, ou seja, que ele não poderia adquirir apenas com essa renda. Para Dipp, ao propor a criminalização do patrimônio "a descoberto" do servidor público a Comissão está ajustando a legislação penal brasileira às convenções de combate à corrupção e lavagem de dinheiro aprovadas pela Organização dos Estados Americanos (OEA), pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A proposta tem sido apoiada por integrantes do Ministério Público e da Controladoria-Geral da União. O problema é que, ao não exigir provas do crime que permitiu a obtenção de valores e bens incompatíveis com a renda, essa proposta passa por cima de direitos e garantias individuais. Ela colide com o princípio constitucional da presunção da inocência, segundo o qual todos são inocentes até prova em contrário. E, ao determinar que caberá ao servidor demonstrar a origem legal de seus bens, ela também inverte o ônus da prova. "O tipo penal proposto visa facilitar a punição diante da incapacidade do Estado de produzir provas efetivas sobre o suposto ilícito que produziu o patrimônio", diz o ex-secretário de Reforma do Poder Judiciário Pierpaolo Bottini. "Se começarmos a tipificar tudo como crime, estaremos sujeitos a arguições de inconstitucionalidade", afirma o criminalista Nabor Bulhões, depois de lembrar que a proposta da comissão vai na contramão de medidas adotadas por países desenvolvidos para coibir a corrupção na administração pública. Na realidade, a inovação proposta pela comissão é redundante. Editada em 1993, a Lei n.º 8.730 obriga os servidores públicos a fornecerem cópias de suas declarações de bens, no momento da posse. E, para coibir o enriquecimento sem explicação, existe a Lei de Improbidade Administrativa, que pune quem "adquirir, para si ou outrem, no exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público". Ninguém discute a necessidade de se modernizar o Código Penal de 1940. Mas a Comissão do Senado tem de tomar cuidado para evitar a substituição de dispositivos arcaicos por outros que, justificados em nome da moralidade, se sobrepõem a leis já existentes e colidem com as liberdades públicas.