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Opinião|Entre a lei e a justiça

Embate protagonizado pelo Judiciário reflete as transformações do Direito brasileiro

Atualização:

O leitor comum, diante do noticiário político recente, sente-se testemunhando profundo embate entre os Poderes da nossa República. À medida que juízes e tribunais figuram com cada vez mais proeminência no País, ouve-se da própria presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia, que magistrados brasileiros se tornaram nos últimos tempos alvo de ataques, de tentativas de cerceamento de atuação constitucional. Enquanto isso, tramita no Congresso Nacional projeto que pretende atualizar a lei de abuso de autoridade, visto por alguns como medida necessária contra excessos do Judiciário e, por outros, como meio de criminalizar a ação legítima de magistrados.

Como ensina o ministro Luís Roberto Barroso, o atual Estado Democrático de Direito, em que vivemos, é uma forma de organização política concebida na Europa após a 2.ª Guerra, a qual entrou em vigor efetivamente no Brasil com a Constituição de 1988. Segundo Barroso, a evolução histórica que nos trouxe até aqui teria partido da concepção moderna de Estado estabelecida pela Revolução Francesa.

Se no Estado pré-moderno as normas advinham de fontes diversas – monarquia, Igreja, feudos, etc. –, que julgavam em nome do bom senso, de tradições e de um Direito “natural” (jusnaturalista), a Revolução impôs um conjunto único de leis, monopólio do Estado (juspositivista), teoricamente formulado pela razão e expresso como vontade da maioria. No Estado moderno dos iluministas, a lei é soberana. E quem faz a lei é o Legislativo. Ao Judiciário, conforme os próprios responsáveis por separar os três Poderes, cabe fazer cumprir a lei, não questioná-la. Para Montesquieu, um juiz seria “a boca que pronuncia as palavras da lei”; para Voltaire, “o primeiro escravo da lei”.

O século 20 trouxe duas grandes guerras e, com elas, a inquietação de que cumprir leis talvez não fosse o suficiente. Diante dos horrores dos regimes nazista e fascista, o mundo ocidental se questionou se não haveria princípios, baseados em valores éticos universais, aos quais nenhuma lei pudesse sobrepor-se, sob o risco de ser injusta, ainda que legítima. Princípios tais como a dignidade humana.

Após a 2.ª Grande Guerra, a dignidade tornou-se um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental, materializado em declarações de direitos, convenções internacionais e Constituições. Surgiu, assim, um novo Direito Constitucional, pós-positivista, que “busca ir além da legalidade estrita” e “não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política”, como observa o ministro Barroso. Foi esse movimento que nos trouxe à Constituição de 1988.

Esse novo constitucionalismo, que entroniza, acima da ordem jurídica, princípios de inegável dimensão subjetiva, como o da dignidade humana ou o da razoabilidade (toda lei deve ser adequada a seu propósito, necessária e proporcional), encontrou aqui uma democracia recém-nascida, sedenta de direitos civis e sociais. E que, não por acaso, passou a contar com amplas forças de controle de constitucionalidade; de forma concentrada, pelo STF, ou difusa, por todo e qualquer juiz ou tribunal, que passaram a ocupar lugar de destaque no imaginário coletivo brasileiro. “A supremacia formal e axiológica” da nossa Constituição deu aos operadores jurídicos a prerrogativa de invalidar, por inconstitucionais, leis e medidas normativas – quando não a prerrogativa mais controversa de convocar ações do legislador (declarações de inconstitucionalidade por omissão, decisões integrativas, etc.), sob o argumento de zelar pelos direitos fundamentais contemplados na “Carta cidadã”. Contexto que, não raro, vem provocando o embate entre Poderes testemunhado pelo leitor.

A questão que se coloca é de limites. De decidir a margem de interpretação que se deve dar aos guardiões da constitucionalidade. E é acerca disso que divergem defensores e críticos do que se convencionou chamar de judicialização do Direito ou ativismo judicial.

Divergência que se dá mesmo entre juristas de inquestionável reputação e saber, como se vê nas críticas feitas pelo professor Ives Gandra da Silva Martins à atuação do STF, para quem o Supremo estaria “invadindo a esfera de competência do Congresso Nacional”, o que traria “muito maior insegurança do que certeza no Direito e na vida dos Direitos” (Revista Brasileira de Direito Constitucional, n.º 18, julho/dezembro de 2011). Enquanto o ministro Barroso, embora enumere diversas ressalvas ao ativismo judicial em sua obra, afirma acreditar que “eventual ação contramajoritária do Judiciário (contrária aos representantes da maioria) em defesa dos elementos essenciais da Constituição se dará a favor e não contra a democracia”. Especialmente, ressalta, “em países de redemocratização mais recente, onde o amadurecimento institucional ainda se encontra em curso, encontrando uma tradição de hegemonia do Executivo e uma persistente fragilidade do sistema representativo”.

O embate hoje protagonizado pelo Judiciário transcende disputas políticas atuais, refletindo transformações profundas do Direito brasileiro.

Diante da realidade política vivida pelo País, impulsionada principalmente pelas listas que nos chegam pelos noticiários, essa discussão tem ultrapassado os meios acadêmicos e jurídicos.

Por julgar as transformações do Direito uma questão de suma importância para as ciências jurídicas nacionais, a Fundação Bunge elegeu esse um dos temas do Prêmio Fundação Bunge. Precisamos ampliar essa discussão. É no debate que se avança e se chega ao consenso.

*Presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas, é curador dos Prêmios Fundação Bunge