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Escalada no mundo árabe

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Por Redação
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O panorama na África do Norte e Oriente Médio está mudando. Em primeiro lugar, contrariando as expectativas otimistas da grande maioria dos observadores internacionais, o ditador líbio, Muamar Kadafi, não imitou os seus congêneres tunisiano e egípcio, Zine Ben Ali e Hosni Mubarak, que trataram de salvar a pele, cada um a seu modo, quando se deram conta ou foram obrigados a perceber que as suas tiranias, formadas havia décadas, ruíam em assombroso pouco tempo sob o impacto das manifestações populares pela democracia. Disposto a pagar qualquer preço para continuar no poder, Kadafi reagrupou as suas milícias e partiu impiedosamente para cima dos rebeldes carentes de liderança, estratégia militar e armamentos que haviam tomado áreas importantes no país, sobretudo a leste da capital, Trípoli. A contraofensiva obrigou os insurretos a recuar mais de uma centena de quilômetros, perdendo posições que pareciam asseguradas quando se supunha que os dias de Kadafi estivessem contados.Já está no horizonte a perspectiva de um ataque do regime a Benghazi, a segunda maior cidade líbia, onde começaram as manifestações que afinal se transformaram numa guerra entre forças patentemente desiguais. Os rebeldes reiteram os seus pedidos de ajuda aos Estados Unidos e União Europeia, sob a forma do envio de armas ou do estabelecimento de uma zona de exclusão aérea no país para manter no solo a aviação de Kadafi. Mas o Iraque e o Afeganistão privaram o Ocidente de condições políticas para abrir uma nova frente de batalha na esfera árabe-muçulmana - a que conduziria inevitavelmente qualquer interferência na Líbia que vá além da ajuda humanitária.A segunda mudança de cenário é o fator etnorreligioso como fonte de arregimentação contra alguns dos cristalizados despotismos da região. Na Tunísia e no Egito, opressores e oprimidos não se distinguiam nem se opunham por suas raízes étnicas ou seitas. O mesmo vale para a Líbia, em que pesem as lealdades tribais no país. Vem daí o caráter inusitado, arrebatador, dos levantes encabeçados pelos jovens nesses três países. As suas demandas por liberdade e democracia não têm parentesco com as milenares diferenças que ensanguentam o Islã. São o histórico fato novo desses conflitos.Já o que move muitos dos manifestantes que se expuseram nas últimas semanas à letal violência empregada contra eles pela bicentenária dinastia do diminuto Bahrein, no Golfo Pérsico, é a sua condição xiita. Embora os xiitas constituam a maioria da população nativa desse país de cerca de 800 mil habitantes, o poder está concentrado nas mãos da elite sunita, a começar da família real chefiada pelo monarca Hamad bin Isa al Khalifa. Foi para mudar esse estado de coisas - não necessariamente para instituir um regime democrático à ocidental - que os descontentes passaram a ocupar no mês passado a Praça Pérola, na capital Manama, numa versão local da Praça Tahrir do Cairo.Os xiitas também cometeram a suprema ousadia de sair às ruas de Riad, na vizinha Arábia Saudita, onde a monarquia absoluta reinante desde 1932 jamais tolerou o menor dissenso, ainda mais em público. A diferença é que os sauditas são majoritariamente sunitas, o que facilita a opressão e o amordaçamento dos rivais. Para os potentados dos dois países, os protestos são insuflados pela grande potência xiita a leste do golfo, o Irã teocrático. O que acaba de conduzir à terceira novidade na cena política regional - a internacionalização dos confrontos. Na segunda-feira, alegadamente "a convite" do rei Khalifa, sob a égide nominal do Conselho de Cooperação do Golfo e com conhecimento prévio dos Estados Unidos - cuja Quinta Frota está fundeada no país -, 1.200 soldados sauditas e 800 policiais dos Emirados Árabes Unidos, a bordo de 150 blindados e 50 outros veículos, entraram em território bareinita para defender o regime. Imediatamente, os xiitas denunciaram a "ocupação", que o Irã considerou "inaceitável". É a ameaça de uma escalada que poderá transformar o despertar árabe numa confrontação além-fronteiras.