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Eu não disse?

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Por Miguel Reale Júnior
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É irritante a frase "eu não disse?" dita logo após o infortúnio. Contudo não resisto a mencioná-la diante da revogação de Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal. Não apenas eu, mas tantos outros alertaram o Supremo sobre o equívoco que se estava a cometer, bastando lembrar René Ariel Dotti, Manuel Alceu Affonso Ferreira, Walter Ceneviva. Mas prevaleceu o argumento ideológico de abolir o entulho autoritário, pois a lei fora votada no Congresso e sancionada em 1967. O politicamente correto muitas vezes redunda em ser proibido pensar. Então, a substância cede ante o simbólico. A necessária proteção da honra contra indevida agressão por meio de imprensa agora caberia ao disposto no Código Penal. A maioria dos ministros não percebeu que, em pontos essenciais, o constante do Código Penal na repressão à calúnia, difamação e injúria é muito mais grave que na Lei de Imprensa. Em artigo publicado nesta página, Manuel Alceu Affonso Ferreira escreveu com propriedade: "As virtudes ou os defeitos de uma lei devem ser detectados no seu conteúdo, jamais na certidão de nascimento." Mas, se a questão é meramente simbólica, até nisso o Supremo errou: a Parte Especial do Código Penal, que trata dos crimes contra a honra, foi objeto de decreto-lei editado na ditadura getuliana, com o Congresso fechado. Na substância, o Código Penal não contempla questões específicas de uma lei da informação. E o pior: tem penas mais graves. O que importa é a pena mínima, pois não se pode aplicar pena abaixo do mínimo. Em geral o juiz sanciona com o mínimo legal. A pena mínima para injúria, difamação e calúnia é a mesma no Código Penal e na revogada Lei de Imprensa. Sucede, todavia, que se ignorou haver no Código Penal (artigo 141, III) obrigatória causa de aumento pela qual a pena é acrescida de um terço quando o crime é cometido "por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação e da calúnia". Assim, a pena mínima de três meses de detenção, prevista na Lei de Imprensa para a difamação, passa a ser, com a causa de aumento no Código Penal, de quatro meses, pois a difamação feita em jornal se deu por via facilitadora da difusão da ofensa. Destarte, revogada a Lei de Imprensa, não se pode retroagir ao fato anterior objeto de julgamento o Código Penal, por prever este sanção mais grave. Os casos em andamento restam sem lei aplicável. Criou-se a impunidade para o passado e a aplicação de pena maior para o futuro. Que confusão! O que dizer, então, da pena de multa? Tanto no Código Penal como na Lei de Imprensa se comina, ao lado da pena de detenção, a pena de multa. Mas na Lei de Imprensa a pena de multa é de um a 20 salários mínimos e no Código Penal o valor pode chegar a R$ 2,5 milhões, conforme a condição econômica do réu. Fundamental para garantir a manifestação de pensamento, especialmente no campo político, é a legitimação do direito de crítica, amplo e alicerçado no interesse público em prol da sociedade. Essa justificação larga do direito de crítica vinha estampada na Lei de Imprensa, em cujo artigo 27 se estabelecia, por exemplo, que não constituía "abuso no exercício da manifestação de pensamento e de informação": o comentário de projetos e atos do Poder Legislativo, bem como debates e críticas a seu respeito; a divulgação e crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes; as críticas às leis e suas inconveniências; e por fim, com grande amplitude, a crítica inspirada pelo interesse público. Na esteira dessas causas de justificação, inexistentes no Código Penal, vicejou a imprensa investigativa, sem temor da repressão penal, tendo por resultado virem à tona inúmeras denúncias de irregularidades de agentes políticos, em favor do interesse geral, desde PC Farias e Collor ao mensalão no governo Lula. O Judiciário, com certeza, deverá, para não limitar o direito de informar e o de crítica, valer-se dos critérios da Lei de Imprensa revogada! Outras questões de relevo indicam o desfavor do Código Penal diante da Lei de Imprensa. Por exemplo, o Código Penal não admite a exceção da verdade quando se atribui a alguém a prática de fato determinado que lese sua reputação. Assim, se verazmente um aluno denunciar ter o professor dado aula bêbado, de nada adianta comprovar a verdade para desconstituir a ofensa. Já a Lei de Imprensa permitia a exceção da verdade como desfazedora do delito de difamação. Nos crimes contra a honra, cabe ao ofendido decidir se vai processar ou não o ofensor. Há um prazo para a formulação da ação penal, o prazo decadencial. Na Lei de Imprensa a vítima tinha três meses para propor o processo; pelo Código Penal, seis meses. A ameaça de acusação resta mais tempo viva. Aspecto relevante é o da prescrição. Pelo Código Penal, o tempo da prescrição, ou seja, o lapso de tempo em que deve sobrevir a decisão de segunda instância, referentemente à pena de um mês de detenção aplicada na sentença por crime de injúria, é de dois anos. Pela Lei de Imprensa a prescrição operava-se pelo dobro da pena imposta, ou seja, em dois meses. Doravante, a prescrição da pena de um mês passa a ser de dois anos, e não mais de dois meses. É assim, em favor da liberdade de imprensa, que se escoimou o entulho autoritário? Há problemas sérios decorrentes de se ter revogado lei específica de imprensa, na qual se impunham limites ao direito de resposta e se estabelecia a responsabilidade em cascata, ou seja, a responsabilidade do diretor do jornal em face de matéria não assinada. Agora, só há um caminho: em 1991, a OAB elaborou anteprojeto de lei de imprensa, por comissão presidida por Evandro Lins e Silva. É hora de preencher o vazio criado pelo simbolismo jurídico, com a rápida votação desse projeto. Mas teria o Congresso, em crise, condições de votar matéria desse quilate? Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça