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Eu sou um excluído digital

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Por Eugênio Bucci
4 min de leitura

Vamos almoçar / Sentados na calçada / Conversar sobre isso e aquilo / Coisas que nóis não entende nada." (Torresmo à Milanesa, samba de Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro) Acaba de sair no Brasil um livro polêmico: O Culto do Amador, de Andrew Keen (Rio de Janeiro: Zahar, 208 páginas). Já no subtítulo, ele deixa claro a que veio: "Como blogs, MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores." Para Keen, a internet promoveu os amadores - em música, cinema, educação, jornalismo, saúde etc. - à condição de donos da verdade. Por isso ela seria destrutiva. Há que se conceder que o autor se fundamenta em fatos. Relata, por exemplo, a agonia de jornais impressos, que enfrentam dificuldades sem precedentes diante da oferta esmagadora de "informações" na rede. "Informações" entre aspas, bem entendido. Produzidas por gente que a gente nunca sabe direito quem é, elas têm credibilidade nula. Mesmo assim, às vezes "colam" e viram "verdade" por alguns dias. Enquanto isso, as redações tradicionais encolhem, cambaleantes, em sucessivas ondas de demissões. O jornalismo como o conhecemos mergulhou numa crise que, sem exagero, podemos chamar de histórica. Se qualquer um pode fazer as vezes de repórter em suas horas vagas, por que é que a sociedade vai precisar de jornalistas profissionais? Por que vai pagá-los? Os estragos perpetrados pela rede mundial de computadores não ficam por aí. O autor mostra a agonia da indústria fonográfica num mundo em que as pessoas já não compram CDs: "baixam" as músicas diretamente da internet. Em geral, pirateadas. Keen também critica frontalmente a Wikipedia, a enciclopédia virtual em que qualquer um pode escrever ou corrigir qualquer verbete e que desbancou a Brittanica.com, que conta com dezenas de prêmios Nobel no seu quadro de colaboradores e é editada por profissionais. É por isso que ele não se conforma. Ex-empreendedor do Vale do Silício - o paraíso das tecnologias digital, na Califórnia, onde muitos fizeram fortuna -, Andrew Keen se desiludiu com o "desandar" da carruagem. Em sua ira, chega a comparar os blogueiros a primatas - isso mesmo, a macacos - dotados de computadores. Não se pode concordar com ele em tudo, evidentemente. Em muitas páginas, fica a impressão de que o autor é um nostálgico que, diante de mudanças difíceis de compreender, parece preferir voltar à tirania do argumento da autoridade (um Prêmio Nobel vale mais do que mil leigos, sem exceção) e ao regime dos velhos meios de massa. Não é preciso ser gênio para saber que a solução não virá por aí. A solução não está nos lucros astronômicos e fáceis das gravadoras, assim como não está nos jornais que, em boa parte, vinham abrindo mão de cultivar a credibilidade e de buscar a inovação. A solução está logo à frente, ou não estará em lugar nenhum. A internet não é a nova face do capeta. Ela tem o mérito indiscutível de ter dado voz aos que não tinham vez - e só por essa proeza já cumpriu um papel democrático notável. Mais ainda: ela deu a (quase) todos mais vias de acesso ao conhecimento produzido por boas fontes. Tudo isso é positivo e não será com saudosismos que vamos resolver os embaraços do caminho. Agora, que esses embaraços são medonhos, isso lá eles são. O pior deles, é curioso, o autor de O Culto do Amador não chega a explorar. Trata-se da concentração de dinheiro e poder que a internet vem proporcionando. Os que dominam a tecnologia e podem investir bilhões de dólares na rede têm mais poder do que outros. Muito se fala da "exclusão digital", mas esse conceito, que já teve sua utilidade, é raso e, por vezes, demagógico. Acredita-se que o "excluído digital" é aquele que não tem um computador ligado à rede mundial. Não é bem assim. No fundo, mesmo eu, que sei mandar e receber e-mails, que uso meu celular para acessar a internet, que escrevo em sites e faço minhas pesquisas pelo Google, mesmo eu sou um excluído digital. Você é um excluído digital. Há várias modalidades de "interatividade" (palavra da moda) que estão além do meu e do seu alcance. Não é verdade que todos sejamos iguais perante a rede. Nos tempos da TV, qualquer um que tivesse um aparelho em casa podia se considerar um "incluído" na comunicação. Hoje a conversa é outra. Conforme o equipamento de que o cidadão disponha, ele terá um nível maior ou menor de aproveitamento e de influência. A separação entre os incluídos e os excluídos não é mais uma risca preta sobre fundo branco. Ela é gradativa e virtualmente (outra palavra da moda) infinita. Isso vale para o sujeito comum, que é cliente dos novos serviços digitais, e também para as empresas e organizações que disputam lugar no chamado ciberespaço. Ou elas têm capital e se situam na vanguarda tecnológica ou ficarão nos últimos vagões do trem. Dizem que a internet "democratizou" a comunicação. Será mesmo? É verdade que, quando vista no plano horizontal, ela abriga uma diversidade de "conteúdos" (mais uma palavra da moda) que nunca foi vista. Mas, se formos capazes de divisar na paisagem o seu eixo vertical - e ele está lá -, perceberemos que os níveis de entrada (e de domínio) na rede são altamente diferenciados. Há uma hierarquia da técnica e do dinheiro separando uns e outros, uma hierarquia metálica, apontada para o céu, que se estende a perder de vista. Keen tem razão num ponto: em sua euforia aparentemente igualitária, a internet fez parecer "autoridades" aqueles que, como no samba de Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro, falam alegremente do que não conhecem. Isso não é democratização. É apenas banalização. E não adianta buscar a saída no passado. Nesse caso, nós dependemos do futuro. O problema é que, se o futuro for aquele que a banalização prenuncia, estamos perdidos. Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP