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Opinião|Getúlio 'modernizou o Brasil'?

Atualização:

Com a chegada às livrarias do terceiro e último volume do Getúlio de Lira Neto, que começa com Gregório Fortunato comandando mais uma das sessões de "degolas sistemáticas", ao estilo Estado Islâmico, das sucessivas guerras da fronteira gaúcha e termina com o tiro no peito a que o encurralou esse mesmo filho da antiga cozinheira da família Vargas feito chefe da guarda pessoal do presidente ao levar o tradicional método de solução de problemas com desafetos de São Borja para a então capital federal no atentado contra Carlos Lacerda, já não há como sustentar enganos sobre o que foram Getúlio Vargas e os 24 anos que o Brasil viveu sob a mais longeva, violenta e corrupta das ditaduras de sua História. Mesmo assim, Getúlio segue, nas discussões de muita gente séria, sendo apresentado como "o homem que modernizou o Brasil". Não quero negar a Getúlio os traços de personalidade que pudessem tê-lo feito simpático e mesmo fascinante para aqueles que ele nunca teve motivos para temer ou de quem nunca tenha querido se livrar, mesmo não comungando a admiração que parece ter a maioria dos jornalistas brasileiros pela "matreirice" e pelo "embaçamento" sistemáticos diante de qualquer situação que exigisse uma tomada de posição clara, esse modo enviesado de cultivar a mentira tida como a sua maior qualidade "política". Mas a pergunta é: "modernizou" quem, cara-pálida? O homem que esteve no poder de 1930 até 1954 presidiu o Brasil no período em que o mundo inteiro passou por um processo intensivo de industrialização e urbanização. O que se quer insinuar, portanto, é que o Brasil não se teria industrializado se Getúlio não estivesse ali? Teria continuado para sempre agrário e quase medieval? Não se teria apercebido do que estava acontecendo à sua volta? Não conseguiria caminhar pelo novo padrão de desenvolvimento que se impunha ao mundo sem ele? Essa, parece-me, é a visão dos que foram treinados desde sempre na visão distorcida de nossos primeiros historiadores pseudomarxistas que criaram a falácia de um Brasil sem empreendedores, só com demiurgos a moldar-lhe as decisões e o destino, que Jorge Caldeira, no seu brilhante e amplamente fundamentado estudo Um Brasil com empreendedores, provou com documentação abundante e demonstrações aritméticas conclusivas que nunca existiu, nem antes nem muito menos depois da onda de imigração europeia. Petrobrás? Volta Redonda? Que "modernização" foi essa, considerado tudo o mais com que nos foram servidas as nossas duas primeiras estatais, tumores que se têm provado até hoje inextirpáveis? O que é que ele mirava quando instalou no País o sindicalismo e o capitalismo "pelegos", copiados da Itália de Mussolini: o Brasil para os brasileiros do futuro ou apenas a maneira mais segura de se manter indefinidamente no poder? A verdade é o inverso: Getúlio condenou-nos ao atraso. Entortou irremediavelmente o Brasil no momento do nascimento da modernidade. Violentou a criança. Moldou-a para o crime. Plantou uma forma sistêmica de corrupção da base da sociedade brasileira oferecendo-lhe, com a dobradinha do sindicalismo pelego com uma "Justiça do Trabalho" irreversivelmente torta, pautada por imperativos "classistas" - na verdade, tão aritméticos e eleitoreiros quanto as "bolsas" de Lula -, em lugar dos imperativos da verdade e da justiça, um apelo irresistível para a venalidade: "traia, minta, falseie que o governo garante". Como resistir, no país onde o que foi contratado e acertado entre dois homens, por escrito ou no "fio do bigode", é letra que já nasce morta, quando o colega do lado, ao ceder à sedução de um advogado corrupto, aciona o patrão com base numa coleção de mentiras e arranca-lhe, sem medo de errar, mais do que ganhou trabalhando anos a fio? Lula tem razão: somos todos corruptos no Brasil que Getúlio nos legou. Daí a corrupção "não colar" como fator decisivo de eleições: é contra a lei ser honesto no Brasil. Não se consegue transitar por suas instituições sem se corromper. Contratar trabalho no que Getúlio fez do Brasil é condenar-se à chantagem certa. Têm custado a cada ano, somente as condenações passadas a cada 365 dias, R$ 50 bilhões às empresas brasileiras os litígios com seus empregados e ex-empregados. Mas o passivo acumulado, só nesse quesito, é maior que o PIB nacional. Bem mais que a metade dos advogados do Brasil, os supostos agentes da Justiça, aliás, dedicam-se a operar diuturnamente essa ordenha certa; a levar cada brasileiro pela mão pela trilha que Getúlio abriu e dividir com ele o produto do assalto. Na ponta de cima não é diferente. Lá, no território do sucesso, onde a presença do dinheiro grosso já tem o efeito corrosivo natural que tem em toda parte, nos aproximamos do que é o resto do mundo, em matéria de corrupção, só que com os agravantes da impunidade ampla, geral e irrestrita. Nossos corruptos seguem podendo exibir livremente o seu sucesso, o que é altamente subversivo. Mas também aí Getúlio inovou ao sinalizar que o grande capitalismo, aqui, é só o de compadrio. Não é apenas depois do sucesso, com o dinheiro que dele advém, que a corrupção pesada se instala. É antes. Da outorga das indústrias de base aos amigo do regime da "Era Getúlio" aos "campeões do BNDES" de hoje há um caminho reto que torna facilmente possível - descartadas as raras exceções que confirmam a regra - traçar a genealogia de cada grande fortuna privada do País até a raiz do governante que proporcionou a algum amigo/financiador de campanhas a oportunidade de amealhá-la sem fazer muita força. Até há pouco tempo, em economias nacionais "fecháveis" e "protegíveis", deu pra ir indo assim, apesar da miséria que isso custa. Mas dará para seguirmos refestelados nas nossas mentiras na economia globalizada, competindo com o mundo? É hora de encarar a verdade: Getúlio não modernizou o Brasil. Ele o mantém preso ao passado como uma gigantesca e irremovível âncora. E não haverá hipótese de nos livrarmos dela antes que reconheçamos a sua existência.*Fernão Lara Mesquita é jornalista e escreve em http://www.vespeiro.com

Opinião por Fernão Lara Mesquita
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