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Gilberto Dupas (1943-2009)

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Por Celso Lafer
4 min de leitura

A atividade intelectual da produção, discussão e transmissão de ideias é muito necessária para a ação política nas sociedades contemporâneas, pois tem como características: a complexidade, a mudança constante, a democratização impulsionada pelo grande número, a globalização que internaliza o mundo na vida dos países e a presença da mídia, que, em tempo real, afeta o cotidiano das nações. Por isso requer tanto valores e diretrizes que apontem rumos nas incertezas das transformações quanto saber técnico, apto a prover os conhecimentos necessários para traduzir rumos apontados e valores escolhidos em políticas públicas viáveis. São múltiplos os papéis que os intelectuais interessados na vida política podem desempenhar numa sociedade. Um deles é o da crítica do poder. Esse papel, com o qual Gilberto Dupas se identificou, tornou-se usual com o processo histórico da modernidade, que levou à descentralização e à desconcentração do poder ideológico. A crítica do poder é a expressão política, com fundamento no kantiano "uso público da razão", do exercício da liberdade de opinião e de pensamento e tem muito que ver com o inconformismo perante os males da sociedade. Na vertente animada pela moralidade da discussão pública, a crítica do poder representa a ideia-força da independência, mas não indiferença, dos intelectuais em relação à política, lastreada na autonomia relativa da cultura em relação à política. Parte do pressuposto de que a conduta racional, fonte da respeitabilidade do ser humano, pressupõe a corrigibilidade dos erros. Identifica no debate que propicia o sopesamento entre razões opostas, um método de entendimento que, no trato de assuntos políticos, econômicos e sociais, permite o controle das decisões do poder governamental. O debate pode levar ao sectarismo das posições, o que nem sempre colabora para a qualidade da decisão. Um dos modos de conter esse sectarismo é o fair-play na análise, impulsionado pela calma para ver e a honestidade para informar os vários lados de uma questão, presentes na agenda da discussão que se dá no espaço público. Dupas dedicou-se ao exercício desse papel nesses moldes com seriedade e convicção. Por isso era um intelectual público e como tal foi reconhecido e apreciado em razão da integridade da sua atuação. Esse é o significado que permeia sua obra e o sentido da sua constante colaboração, durante tantos anos, no espaço aberto desta página. Essa foi a identidade institucional que imprimiu, na USP, ao Gacint - o grupo multidisciplinar de análise da conjuntura internacional -, do qual era coordenador, assegurando a esse foro de discussão o pluralismo das perspectivas e o empenho na busca da objetividade, que são a marca do ethos universitário. Foi nessa mesma linha que atuou durante anos como excepcional editor da revista Política Externa. No exercício de responsabilidades institucionais e na sua atuação como intelectual público, Dupas associava o empenho na busca de uma visão global, atento aos males da sociedade contemporânea, e o saber técnico, voltado para a avaliação do relacionamento entre fins desejáveis e meios disponíveis. No plano do saber técnico Gilberto Dupas tinha o lastro da sua formação de engenheiro e de economista sedimentado pela experiência que teve como executivo no setor privado. Isso lhe proporcionou o conhecimento "de dentro" da lógica das cadeias produtivas e do mundo das finanças. Lidou também com o desafio do setor público, como presidente da Caixa Econômica Estadual e secretário da Agricultura e Abastecimento na democraticamente afirmativa e ética gestão do governador Franco Montoro no Estado de São Paulo. No plano da visão geral, Dupas tinha uma postura crítica em relação à sociedade contemporânea e ao Brasil. Empenhou-se, nos últimos anos, num parar para pensar criticamente os pressupostos que conformam a vida moderna. Daí o papel que atribuiu à Filosofia como um sempre renovado questionamento de pressupostos. Foi nessa linha que escreveu sobre o mito do progresso e a respeito das tensões estruturais entre meio ambiente e crescimento econômico, tratou da dicotomia economia global/exclusão social e debruçou-se sobre ética e poder na sociedade de informação. Sua obra e sua atuação como intelectual público tiveram como marca registrada, numa dialética de complementaridade, o olhar metodológico do realismo do saber técnico e o coração utópico, de vocação ética, de uma visão geral voltada para o Outro. Sua dedicação às relações internacionais muito se prestava à sua maneira de ver as coisas, pois a sua análise, sempre precisa, da conjuntura e dos eventos, se conjugava com a larga visada de uma reflexão sobre o mundo em que estamos inseridos. "A morte, sempre esperada, é sempre inesperada", afirmou Octavio Paz. Gilberto Dupas enfrentou com coragem essa expectativa do inesperado desde o momento em que soube, no ano passado, da letal doença que tinha. Não incidiu, como dizia o padre Antonio Vieira, nas lágrimas, que são o alívio natural para as enfermidades da vida, nem se entregou, sem mais, ao remédio artificial para essas enfermidades, que são os medicamentos. Com a coragem pessoal do sentimento de suas próprias forças, jogou xadrez com a morte, como no conhecido filme de Ingmar Bergman. Empenhou-se, para continuar com o padre Vieira, em "meter tempo entre a morte e a vida" e buscou "morrer bem para morrer melhor". Como seu fraternal amigo e parceiro no correr dos anos, em tantas atividades, creio que o melhor elogio que posso fazer a Gilberto Dupas é reiterar que a sua atuação como intelectual público caracterizou-se, na linha de Bobbio, pela "inquietação da pesquisa, o aguilhão da dúvida, a vontade do diálogo, o espírito crítico, a medida no juízo, o sentido da complexidade das coisas". Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC