
02 de junho de 2015 | 03h00
Se, por um lado, se percebe ao longo dos anos a ausência de vontade política no combate a esse crime, vez ou outra assistimos a ataques a ele sem planejamento ou articulação. Não raro esferas do Poder Executivo se sobrepõem umas às outras, um exemplo claro dessa falta de afinação está nas tentativas de pôr fim à cracolândia – ferida renitente instalada no centro de São Paulo que tem posto à prova a capacidade de nossas autoridades de estabelecer uma frente eficaz de trabalho para dissolver esse retalho de inferno que concentra consumidores da droga barata derivada da cocaína.
Em ação recente o governo do Estado mobilizou recursos que se concentraram em métodos que não se ajustaram nem se robusteceram pela fusão de vontades e esforços. Com o insucesso da ação, surgiu a Prefeitura com o inusitado programa De Braços Abertos, em que mantém usuários de crack em hotéis da região, o que facilita a compra e venda de drogas nesses locais. E com a Guarda Metropolitana fazendo prisões de traficantes varejistas tentou pôr fim à “favelinha” que ali se instalou, na vã esperança de dar fim à cidadela alimentada por eles. O poder do Estado nunca se fez efetivamente presente na área, o que abriu espaço para que a criminalidade organizada – ativa e crescente no País – fizesse desses usuários seus clientes cativos.
A solução da cracolândia, porém, não se pode dar como uma “delenda Cartago”. Urge, com o envolvimento convergente das esferas do Poder Executivo, plano amplo e profundo de gestão pública, estruturado com claras divisões de tarefas, união de recursos adequados à magnitude e gravidade do problema e participação de agentes multidisciplinares com experiência concreta no combate ao tráfico de drogas, seu uso e consequências. Tanto quanto um drama humano de grandes proporções e de desdobramentos imprevisíveis, a cracolândia transformou-se num ameaçador problema político que exige, para sua solução, competência e coragem para enfrentá-lo. A ação policial desarticulada não fará milagres. A contenção policial da área tem levado seus frequentadores a uma mudança geográfica temporária em busca de drogas.
A cracolândia é a demonstração clara de que São Paulo prescinde da geografia do Rio de Janeiro para tolerar aqui minicidades entregues aos traficantes, para vergonha dos paulistanos. A população que nela vive insiste em ali permanecer porque traficantes lhe criaram dependência. E assim, nesse quadro desumano, as prisões feitas nem sequer produzem mudanças significativas, pois com elas os traficantes varejistas são substituídos ato contínuo e outros assumem seu lugar no abastecimento daquela população.
Prisões de traficantes de rua, se condenados, resultam – parte delas – na conhecida pena de um ano e oito meses. Logo eles voltam às ruas para reassumir seus postos, novamente voltam a ser alvos das polícias e tudo recomeça – lembrando a brincadeira infantil dos “escravos de Jó, tira, põe, deixa ficar...”.
O governo federal, sem dúvida, tem responsabilidade – e muita – pelo crescente aumento do tráfico de cocaína, porque o Brasil não a produz – o que chama a atenção para a vulnerabilidade das nossas fronteiras.
Por um lado, os traficantes sofisticaram-se e organizaram-se; por outro, perdemos a arma de poder intimidativo forte de que dispúnhamos. Antigamente ainda tínhamos alguma rigidez na lei. Eu disse alguma. O cumprimento da pena dos condenados por crimes hediondos e equiparados a eles, como o tráfico de drogas, era integralmente em regime fechado. Hoje isso faz parte da História. Além da obrigatória progressão de regime (de fechado para o semiaberto e deste para o aberto), muitos condenados por tráfico já iniciam suas penas em regime semiaberto e outros ainda são “agraciados” com o aberto. Nesses dois últimos casos, ainda que com certas obrigações, os condenados cumprem pena nas ruas, o que, por óbvio, não os impede de dar continuidade à mercancia ilícita. E há também aqueles para os quais as penas privativas de liberdade são convertidas em restritivas de direitos: um traficante no Brasil chega a ser condenado, por exemplo, a prestar serviços à comunidade ou a entidades públicas. O artigo da lei de drogas que veda tal conversão foi nessa parte declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o que levou o Senado a suspender sua execução.
Em verdade, o tráfico de entorpecentes – em que pese ser tratado com rigor pela Constituição (artigo 5.º, inciso XLIII) – tornou-se crime corriqueiro e grande parte daqueles que o praticam não mais se intimida com as incompatíveis penas a que são condenados. A certeza desses traficantes é uma só: se presos, a liberdade não tardará a chegar.
Cresceram tanto os direitos dos autores de crimes neste país – e falam tão alto – que inibem a voz, já rouca, das vítimas, de suas famílias e de toda a população ordeira que aqui vive.
A sensação de impunidade dos traficantes e de outros criminosos vem tomando conta também dos adolescentes infratores. Daí a presença marcante de menores no tráfico de drogas. E essa sensação atinge os não poucos estrangeiros que resolvem aqui praticar o comércio ilícito de drogas, atraídos pela hospitalidade brasileira e a frouxa legislação. Esta é, sem dúvida, a principal razão para o alto índice de criminalidade no Brasil: a impunidade.
*Marcia de Holanda Montenegro é Procuradora de Justiça, coordenou o grupo de controle externo da atividade policial e a Câmara especializada em crimes praticados por prefeitos, do Ministério Público do estado de São Paulo
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